Introdução
Quando o Código Florestal foi aprovado em 2012, instituindo o Cadastro Ambiental Rural (CAR), não havia clareza sobre a dimensão do desafio que os governos federal e estaduais enfrentariam para implementar o cadastro e as demais etapas do processo de regularização ambiental. A lei estabeleceu regras que dependiam de sistemas e ferramentas tecnológicas robustas, além de bases cartográficas de alta resolução e abrangência nacional, que não estavam plenamente disponíveis para a adoção imediata pelos entes federados.
A implementação da lei e de seus instrumentos tem sido um processo contínuo. Após um período de estagnação inicial, devido aos questionamentos sobre sua constitucionalidade e aos desafios para o desenvolvimento da infraestrutura tecnológica necessária, surgiram iniciativas e experimentações significativas tanto no governo federal quanto nos estados. Diversas estratégias foram testadas, resultando em avanços heterogêneos e em ritmos muito distintos. Durante um bom tempo, apenas um pequeno grupo de estados liderou a implementação da lei, mas nos últimos dois anos observou-se um progresso substancial e um salto na agenda em todo o país.[1] Esses avanços indicam que o Código Florestal entrou em uma nova fase e sua implementação pode ganhar escala de forma exponencial.
Ao mesmo tempo, pressões crescentes por uma conclusão rápida da análise do CAR têm amplificado críticas e dúvidas relacionadas à forma como os governos federal e estaduais estão implementando a lei – em especial o CAR e o Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar).[2] Nesse cenário, torna-se essencial esclarecer como esses instrumentos funcionam, como estão sendo implementados, como se organiza sua governança e quais são as barreiras ainda existentes e os caminhos de superação.
O Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) monitora a implementação do Código Florestal e mede de forma contínua o seu progresso em todos os estados brasileiros, através de relatórios anuais e inúmeras publicações sobre o tema. Com uma década de experiência acumulada, pesquisadoras do CPI/PUC-Rio explicam, nesta nota técnica, o que são o CAR e o Sicar, como ocorre a governança desses instrumentos em âmbito federal e estadual, a importância do CAR como pilar do Código Florestal, as estratégias de análise dos cadastros com foco nas ferramentas de automatização e, por fim, os principais desafios e oportunidades para o aprimoramento do sistema.
Principais mensagens
- O CAR tem duas dimensões: em sua dimensão individual, o CAR é um registro que caracteriza um imóvel específico; em sua dimensão coletiva, o CAR é um banco de dados queengloba as informações ambientais dos imóveis rurais no Brasil. Essa dimensão coletiva não se confunde com o Sicar. CAR e Sicar são instrumentos com naturezas distintas, porém interdependentes. O CAR é a base de dados nacional, enquanto o Sicar é a plataforma tecnológica que armazena, organiza e operacionaliza o CAR e permite que as finalidades do CAR sejam alcançadas na prática.
- A governança do Código Florestal é complexa e envolve a atuação conjunta de órgãos federais – especialmente o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) – e estaduais e deve ser estruturada para assegurar o funcionamento harmônico do sistema federativo. Por isso, as estratégias e decisões do governo federal sobre o CAR e o Sicar precisam ser tomadas com a participação efetiva dos estados – principais executores da política, garantindo uma implementação coordenada e eficiente em todo o território nacional.
- Ao longo dos anos, o Sicar sofreu alterações operacionais e tecnológicas, em decorrência de mudanças de governo, evidenciando uma fragilidade na governança do sistema, com impactos na implementação da lei. O ano de 2024 marcou o início efetivo da gestão compartilhada do Sicar entre o SFB e o MGI e a migração da base de dados do CAR para a Dataprev, empresa pública especializada em tecnologia da informação. Essa mudança permite uma gestão mais eficiente e a modernização do sistema, com o desenvolvimento de configurações mais flexíveis, seguras e escaláveis, capazes de atender a demandas atuais e futuras.
- Qualquer decisão relacionada ao Sicar afeta diretamente a funcionalidade do CAR, bem como a capacidade dos estados implementarem a lei e o avanço da regularização ambiental. Por isso, é essencial que problemas no Sicar não sejam enfrentados de forma unilateral ou resolvidos com soluções imediatistas. Melhorias contínuas, a partir da infraestrutura existente, são fundamentais para reduzir custos e minimizar os riscos de descontinuidade, protegendo a robustez do sistema, sem romper com o processo de implementação do Código Florestal.
- A análise dos dados declarados no CAR é uma obrigação legal e fundamental para que o cadastro cumpra seu papel como instrumento central do Código Florestal. Todos os estados já iniciaram a etapa de análise dos cadastros, embora com grandes diferenças em ritmo e abordagem. Diante dos múltiplos desafios envolvidos, que vão além da dimensão tecnológica, o êxito dessa etapa depende da combinação de diferentes estratégias.
- Sistemas de automatização têm se mostrado cruciais para ampliar a escala e a eficiência da análise dos dados do CAR. Atualmente existem três ferramentas de automação em uso com funcionalidades distintas. Abordagens tecnológicas focadas apenas na conformidade ambiental dos imóveis podem ser úteis como uma etapa preliminar. No entanto, é preciso ir além para atender plenamente às exigências legais e às múltiplas finalidades do CAR, validando e/ou retificando os dados geoespaciais declarados.
Entendendo o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar)
O Cadastro Ambiental Rural (CAR) foi instituído pela Lei no 12.651/2012 como um registro público eletrônico de âmbito nacional para integrar informações ambientais dos imóveis rurais, servindo como base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento. Nesse contexto, o CAR tem um sentido coletivo, como um banco de dados queengloba uma pluralidade de informações ambientais de milhões de imóveis rurais no Brasil. Esse sentido está claro quando a lei dispõe que “a inscrição no CAR é obrigatória e por prazo indeterminado para todas as propriedades e posses rurais” (art. 29, § 3º da Lei no 12.651/2012).
Ao mesmo tempo, a lei confere ao CAR um sentido individual, como um registro que caracteriza um imóvel específico, constituído por um código alfa numérico que singulariza o cadastro de uma propriedade ou posse rural. Essa acepção fica clara quando a lei estabelece que “é o produtor rural autorizado a apresentar o CAR de que trata o caput deste artigo, para fins de apuração da área tributável (…).” (art. 29, § 5º da Lei no 12.651/2012).
Já o Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) foi criado pelo Decreto no 7.830/2012 como um sistema eletrônico de âmbito nacional que armazena, organiza e integra os dados do CAR de todos os estados. O Sicar é a estrutura tecnológica que suporta e operacionaliza o CAR e permite que seus objetivos sejam alcançados.
O Sicar foi desenvolvido pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB) para ser uma plataforma modular, customizável, parametrizável e evolutiva, de maneira que os estados possam adotar integralmente o sistema federal, utilizar sistemas próprios e integrar as informações estaduais ao Sicar ou customizá-lo para abarcar as especificidades locais, quando necessário.[3]
Atualmente, o Sicar é um pacote tecnológico que contempla vários módulos, dentre eles de cadastro, recepção de dados, análise por equipe, análise automatizada, monitoramento, adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) e de contato online dos produtores rurais, por meio da Central Proprietário/Possuidor.
Resumindo, o CAR, em sua dimensão coletiva, é a base de dados nacional, enquanto o Sicar é a plataforma tecnológica que armazena, organiza e operacionaliza o CAR e permite que as finalidades do CAR sejam alcançadas na prática. Uma analogia seria dizer que o CAR é como o conteúdo de um livro, enquanto o Sicar é a biblioteca digital que organiza e disponibiliza esse conteúdo.
Tabela 1. Diferenças entre CAR e Sicar
Fonte: CPI/PUC-Rio, 2024
Governança do CAR e do Sicar
A governança do Código Florestal deve ser estruturada de forma clara e colaborativa, estabelecendo as competências dos órgãos nacionais e estaduais envolvidos e assegurando a integração necessária para o funcionamento harmônico do sistema federativo.
Embora o Código Florestal seja uma lei federal, sua implementação ocorre principalmente no âmbito estadual. Isso confere aos estados um papel de protagonismo na operacionalização das regras e instrumentos da lei, sendo fundamental para assegurar sua efetiva execução.
As decisões do governo federal sobre estratégias para aplicação da lei e de seus instrumentos têm impactos diretos nos estados, que, por sua vez, são responsáveis pela execução prática da política florestal e pelo cumprimento dos objetivos de regularização. No entanto, é essencial garantir que a autonomia dos estados na implementação dessa política não comprometa os compromissos e metas climáticas assumidos pelo Brasil, tanto em nível nacional quanto internacional. Para isso, é necessário um equilíbrio entre centralização e descentralização, com mecanismos de participação e articulação que promovam transparência, cooperação e eficiência na gestão do Código Florestal.
Governança do CAR e do Sicar no governo federal
O Sicar foi instituído em 2012 e sua gestão foi atribuída “informalmente” ao SFB que, à época, era órgão integrante do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Em 2017, com a nova estrutura regimental do MMA,[4] o SFB passou formalmente a ter competência para gerir o Sicar, coordenar o CAR e apoiar a sua implementação nas unidades federativas.
Em 2019, o SFB foi transferido para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), levando consigo a gestão do Sicar. Contudo, tanto a plataforma tecnológica quanto o banco de dados do CAR ficaram armazenados em uma infraestrutura física do tipo data center localizado no MMA. Em abril de 2022, a plataforma (Sicar) e o banco de dados (CAR) migraram para uma infraestrutura de nuvem, sob a gestão do Departamento de Tecnologia de Informação (DTI) do Mapa. A migração foi acompanhada por mudanças na equipe de desenvolvedores e de suporte aos estados e gerou uma série de problemas, impactando as análises dos cadastros, a validação pelos gerentes operacionais e a integração entre as bases estaduais e o sistema federal. Essa situação provocou uma crescente insatisfação pelo serviço desempenhado pela DTI/Mapa, associada ao desejo de que o sistema e o banco de dados fossem realocados em um órgão com mais recursos humanos e maior capacidade operacional.
Com a mudança de governo em 2023 e o retorno do SFB ao MMA, o CAR tornou-se objeto de disputas entre aqueles que defendiam a manutenção da base de dados sob a gestão do SFB e os que pleiteavam sua vinculação ao Mapa. A solução encontrada foi transferir a gestão do CAR para o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), por meio da Lei nº 14.600/2023, com a condição de que o aprimoramento da infraestrutura tecnológica do Sicar fosse articulado com o MMA.[5] No entanto, a formalização legal não foi imediatamente implementada e o SFB permaneceu responsável pela administração do Sicar e do CAR ao longo de 2023.
O ano de 2024 marcou o início efetivo da gestão compartilhada do Sicar entre o SFB e o MGI. A base de dados do CAR e a plataforma tecnológica do Sicar foram transferidas para a infraestrutura física da Dataprev, empresa pública especializada em tecnologia da informação vinculada ao MGI. Ao MGI cabe a gestão da infraestrutura tecnológica do Sicar, incluindo a arquitetura do sistema, sustentação tecnológica, disponibilidade e segurança, além da gestão integral da base de dados do CAR, que compreende desde a inscrição dos imóveis rurais no sistema até o armazenamento das informações declaradas.
Já o SFB, como responsável pela política de regularização ambiental, assumiu a gestão das etapas a partir da análise dos dados do CAR. Isso inclui a definição das regras de negócio e das especificações de todos os módulos do sistema relacionados à análise, como os de análise por equipe e análise dinamizada, e das etapas subsequentes do processo de regularização ambiental, incluindo o PRA. Ao MGI, cabe a execução tecnológica, implantando e mantendo os módulos de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo SFB.
A migração do sistema para a DataPrev levou mais tempo do que o planejado, estendendo-se de fevereiro a agosto de 2024. Durante esse período, surgiram desafios significativos que impactaram negativamente a estabilidade do Sicar, o compartilhamento de dados do CAR e o funcionamento da análise dinamizada. Esses problemas ocorreram devido à complexidade do sistema e ao grande volume de dados geoespaciais do CAR, que requerem uma infraestrutura robusta e um conhecimento técnico aprofundado para a sua resolução. Por isso, a DataPrev precisou de um período adicional para compreender o funcionamento do Sicar, adequar a infraestrutura às especificidades do sistema e propor melhorias para a sua operação.
Ao final de 2024, quase todos os incidentes relacionados à migração foram resolvidos. Com as melhorias que estão sendo implementadas na arquitetura do sistema, como o uso de máquinas individualizadas para cada módulo, o Sicar terá maior capacidade, estabilidade e velocidade, aprimorando a execução das análises, sincronização com sistemas estaduais, o download de dados e outras operações essenciais.
Recentemente, em 19 de novembro de 2024, o governo federal editou o Decreto no 12.254 regulamentando a estrutura regimental do MMA e definindo novas competências. Esse decreto estabelece que a Secretaria Extraordinária de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial (SECD) deve assistir o Ministro de Estado na formulação de políticas, normas e estratégias para a implementação do Sicar. Ao SFB compete a gestão e a coordenação do Sicar, em articulação com o MGI. Observa-se que esse decreto confirma a gestão compartilhada do Sicar entre MGI e SFB, mas trouxe um novo ator na governança do sistema. Ressalta-se que a SECD não possui competência para editar normas ou criar estratégias sobre o Sicar de forma independente; sua função é subsidiar a Ministra, que deverá atuar em articulação com o MGI para tomar as decisões relacionadas ao sistema para fins de combate ao desmatamento.
Governança do CAR nos estados
A governança do Código Florestal nos estados varia significativamente e reflete as especificidades locais e a necessidade de integração entre as agendas florestal e de desenvolvimento rural. Enquanto muitos estados concentram a implementação do CAR e do PRA em um único órgão ambiental, outros dividem essas atribuições entre diferentes secretarias ou agências, incluindo aquelas voltadas ao setor agrícola. Apesar dessas diferenças, a maior parte dos estados concentra a governança na Secretaria de Meio Ambiente.
Os estados são responsáveis pela operacionalização do CAR, o que exige medidas concretas como a definição de regras, o desenvolvimento de sistemas tecnológicos, a adoção de bases cartográficas e a criação de procedimentos para inscrição, análise, notificação e validação das informações declaradas no cadastro. Contudo, desafios financeiros, técnicos e operacionais frequentemente dificultam o pleno cumprimento dessas funções.
Nesse contexto, o governo federal passou a desempenhar um papel central no desenvolvimento de tecnologias e ferramentas de apoio aos estados. O decreto que instituiu o Sicar previa a disponibilização de um módulo de cadastro para estados sem sistemas próprios, mas outros módulos, como os de análise por equipe, análise dinamizada e regularização ambiental, foram desenvolvidos gradualmente pelo SFB.
Além disso, muitos estados dependem do governo federal para a disponibilização de bases cartográficas temáticas, essenciais para análises precisas. Mesmo os estados que desenvolveram seus próprios sistemas e adotaram ferramentas tecnológicas independentes precisam manter plena integração ao Sicar, e consequentemente, são impactados por mudanças no sistema.
Essa relação de interdependência evidencia a importância de uma governança colaborativa. As estratégias e decisões do governo federal sobre o CAR e o Sicar precisam ser tomadas com a participação efetiva dos estados, garantindo uma implementação alinhada e eficiente em todo o território nacional.
Importância do CAR como pilar do Código Florestal
Importância do CAR em sua dimensão individual
O CAR como registro individual é uma espécie de radiografia ambiental do imóvel rural – permite ao poder público e à sociedade conhecer as áreas com florestas e outras formas de vegetação nativa, as áreas consolidadas com atividades agropecuárias e as áreas degradadas ou abandonadas.
A inscrição de um imóvel rural no CAR é autodeclaratória e o proprietário ou possuidor deve manter o registro atualizado. Qualquer mudança no uso da terra, como supressão de vegetação, ou nas informações cadastrais, como mudança na titularidade do imóvel, desmembramento ou remembramento, devem ser refletidas no cadastro, tornando-o um registro permanente e dinâmico.
A inscrição no CAR é uma condição para o produtor aderir ao PRA, regularizar os passivos em áreas rurais consolidadas em APP e Reserva Legal por meio de regras mais flexíveis e suspender multas sobre desmatamentos anteriores a 2008.
O cadastro também passou a ser uma informação essencial para a prática de atividades agropecuárias, pois o acesso a determinadas políticas públicas, ao crédito rural e à obtenção de licenças e autorizações administrativas dependem do CAR para a concessão do benefício ou da autorização.
Importância do CAR em sua dimensão coletiva
O CAR em seu sentido coletivo é um banco de dados multifuncional para o controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento, sendo fundamental para a implementação de políticas públicas ambientais e climáticas, agropecuárias, de desenvolvimento e crédito rural.
Como ferramenta de controle ambiental, as informações do CAR permitem aos órgãos competentes identificar a conformidade legal dos imóveis rurais ao Código Florestal, se conservam as Áreas de Preservação Permanentes (APPs) e Reservas Legais e se há passivos ambientais que precisam ser recuperados.
O cadastro também possibilita o monitoramento das mudanças no uso da terra e na cobertura vegetal ao cruzar as informações declaradas com imagens de satélite e verificar desmatamentos irregulares, restauração florestal e recuperação de áreas degradadas e a conformidade do uso agropecuário.
Além disso, com base nas informações do CAR, é possível aprimorar a gestão e o planejamento ambiental não apenas da propriedade, mas da paisagem como um todo, auxiliando na definição de políticas públicas e na identificação de áreas prioritárias para a conservação e restauração da vegetação nativa, priorizando por exemplo a criação de corredores ecológicos.
O CAR também é um valioso instrumento de planejamento rural e econômico, permitindo a identificação de áreas disponíveis para a expansão de atividades produtivas, a conformidade ambiental para acesso ao crédito rural, a identificação de áreas conservadas para pagamento por serviços ambientais (PSA) e emissão de cotas de reserva ambiental (CRA).
Por fim, o CAR também é uma ferramenta que auxilia o combate ao desmatamento facilitando a identificação, responsabilização e aplicação de sanções pelo desmatamento ilegal ao cruzar os dados do cadastro com sistemas de monitoramento por satélite, como o DETER.
Análise dos dados declarados no CAR
Obrigação de analisar os dados declarados no CAR
O Código Florestal instituiu o CAR como um instrumento de gestão cuja finalidade e eficácia dependem diretamente da qualidade e confiabilidade dos dados declarados pelo proprietário ou possuidor, permitindo sua utilização para os múltiplos objetivos de controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico, e de combate ao desmatamento.
A análise[6] dos dados declarados no CAR é, portanto, um dever do poder público e essencial para a validação dos cadastros e a operacionalização dessa ferramenta. O art. 7º do Decreto nº 7.830/2012, que regulamenta o CAR, prevê de forma clara essa obrigação. Esse dispositivo estabelece que o órgão competente deve analisar as informações declaradas e, identificando inconsistências ou pendências, notificar o requerente para que realize as correções e complementações necessárias.
A Instrução Normativa MMA nº 2/2014 define os procedimentos gerais do CAR e regulamenta detalhadamente o procedimento de análise. A norma dispõe que a análise dos dados declarados no CAR será de responsabilidade do órgão estadual, distrital ou municipal competente.[7] Além disso, especifica os aspectos mínimos a serem verificados na análise por equipe ou automática das informações declaradas.[8] As previsões dessa norma reforçam que a análise envolve um processo estruturado e técnico para assegurar a qualidade e a integridade dos dados cadastrados.
A etapa de análise do CAR tem como objetivos: (i) verificar se as informações autodeclaradas pelo proprietário ou possuidor são consistentes, verdadeiras e alinhadas com as normas legais, ou seja, se correspondem à realidade do imóvel, e, a partir dessa verificação, (ii) atestar a regularidade ambiental, identificando passivos ambientais ou confirmando o atendimento aos critérios estabelecidos pelo Código Florestal.
Logo, a análise dos dados declarados nos cadastros é essencial para garantir a gestão eficiente do CAR e uma etapa indispensável para que essa ferramenta cumpra seu papel de instrumento pilar do Código Florestal.
Alternativas para análise do CAR e experiência dos estados
Em 2024, todos os estados alcançaram a etapa de análise dos cadastros, embora com grandes diferenças entre eles. Aproximadamente 20 estados realizam a análise dos dados do CAR por meio de uma rotina própria e estruturada, que pode ser denominada de análise “ativa”. Nos demais, a análise ocorre de forma “reativa”, por exemplo, quando necessária para a emissão de autorizações e licenças ambientais, no âmbito de ações de fiscalização, em cumprimento a determinação judicial, ou por requerimento do proprietário ou possuidor.
A análise dos dados declarados no CAR ocorre em ciclos até que seja concluída e o cadastro considerado validado. Esse processo pode ser conduzido por equipe técnica especializada e/ou por sistemas automatizados.
Os estados iniciaram essa etapa através da análise por equipe, que consiste na revisão dos dados declarados nos cadastros por técnicos especializados que verificam a sua qualidade, notificam o responsável para que realize correções ou complementações, caso necessário, e, ao final, homologam as informações e atestam a regularidade ambiental do imóvel ou a necessidade de correção de passivos.
O êxito da análise por equipe deve-se à adoção de estratégias específicas pelos estados, que vêm sendo progressivamente desenvolvidas e aperfeiçoadas. Entre as iniciativas bem-sucedidas destacam-se a contratação de equipe especializada dedicada à análise dos cadastros, a padronização e o treinamento contínuo dessas equipes, a realização de mutirões de regularização e a formação de parcerias importantes com outros órgãos públicos e atores privados. Além disso, a descentralização da análise para os municípios e empresas terceirizadas, a repartição de competência entre órgãos ambientais e órgãos de agricultura e desenvolvimento rural, e o alinhamento do CAR com outras políticas públicas ambientais têm sido fundamentais para aumentar a eficiência do processo.[9]
Nos últimos anos, ferramentas tecnológicas de automatização têm se mostrado cruciais para ampliar a escala e a eficiência da análise dos dados do CAR, embora as análises por equipe continuem sendo indispensáveis. A análise automatizada tem demonstrado ser particularmente eficaz na validação de cadastros que não requerem retificações significativas e para imóveis que não possuem passivos ambientais, especialmente aqueles menores que quatro módulos fiscais.
Atualmente, sistemas de automatização para auxiliar nas análises já estão sendo usados em dez estados: Alagoas, Amapá, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo. Os resultados alcançados, entretanto, ainda não refletem todo o potencial dessas ferramentas. Isso se deve ao fato de que muitos estados só começaram a utilizá-las recentemente, ainda estando em processo de adaptação e integração tecnológica. A seção a seguir detalha as três principais ferramentas em uso pelos estados.
Ferramentas de automatização das análises do CAR
Ferramentas tecnológicas de análise automática das informações declaradas no CAR devem atender a requisitos mínimos estabelecidos na legislação para garantir a confiabilidade dos dados.[10] Essas ferramentas precisam ser capazes de verificar informações essenciais, fornecendo subsídios adequados para as etapas subsequentes de implementação e gestão ambiental.
Por exemplo, a análise deve incluir a verificação da consistência e exatidão dos shapefiles que delimitam Áreas de Preservação Permanente (APPs), Reservas Legais, áreas de uso consolidado e remanescentes de vegetação nativa. Esses elementos são essenciais para o monitoramento das áreas em recuperação, para validar a emissão de CRA e a compensação de Reserva Legal e para conceder benefícios como o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). Sem a validação geoespacial desses shapefiles, o cadastro pode apresentar inconsistências, dificultando a identificação de áreas que necessitam de intervenção ou proteção.
A seguir, são detalhadas as principais ferramentas de automação disponíveis e suas funcionalidades:
Análise Dinamizada
A análise dinamizada, desenvolvida pelo SFB e integrada ao Sicar, utiliza imagens de sensoriamento remoto como bases de referência geoespaciais para verificar as informações declaradas no CAR. O sistema opera em três etapas principais: revisão de dados, retificação automática e análise de regularização ambiental.[11], [12], [13]
Na etapa de revisão de dados, o sistema realiza cruzamentos espaciais para identificar inconsistências no perímetro dos imóveis, sobreposições com áreas de domínio público (como terras indígenas e unidades de conservação), uso do solo, hidrografia e desmatamento pós-2008. Caso sejam detectadas divergências entre os dados declarados e as informações obtidas pelas bases geoespaciais, o sistema propõe a retificação automática dos shapefiles. Após a retificação, o proprietário ou possuidor deve concordar com as alterações; caso contrário, o cadastro segue para análise por equipe técnica.
Com base nas informações corrigidas ou validadas, a ferramenta verifica a regularidade das APPs, Reserva Legal e áreas de uso restrito, aprova a localização da Reserva Legal e identifica excedentes de vegetação nativa aptos à emissão de Cotas de Reserva Ambiental (CRA). O sistema também oferece flexibilidade para customização pelos estados, permitindo ajustes de tolerância de sobreposição e adoção de bases de referência mais refinadas, disponibilizadas pelos entes subnacionais.
Alagoas, Amapá, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro já implementaram a ferramenta, mas os resultados nesses estados foram impactados pela migração do CAR para a infraestrutura da DataPrev, em 2024. A instabilidade do sistema afetou tanto a velocidade quanto a capacidade da análise dinamizada de processar os cadastros. No entanto, com as melhorias já em curso no Sicar e a ampliação do uso dessas ferramentas pelos estados, espera-se que os avanços se tornem perceptíveis no curto prazo.
Customização da Análise Dinamizada
Para implementar a análise dinamizada, São Paulo customizou o sistema desenvolvido pelo SFB, estabelecendo um conjunto normativo próprio e homologando bases cartográficas estaduais. Essa abordagem permitiu ao estado analisar 90% de sua base cadastral com eficiência. A customização também possibilitou a incorporação das regras do artigo 68 do Código Florestal, que define o percentual de Reserva Legal com base na legislação vigente à época da abertura das áreas, garantindo maior precisão e adequação às particularidades locais.[14]
CAR Digital
O CAR Digital, desenvolvido pelo Mato Grosso, surgiu como uma solução inovadora para superar os desafios na análise dos cadastros ambientais. Diferentemente da análise dinamizada, esse sistema não trabalha diretamente com os dados autodeclarados pelos proprietários ou possuidores. Em vez disso, elabora novos cadastros (CAR Digital) a partir do cruzamento dos perímetros dos registros já existentes com um amplo conjunto de bases cartográficas de alta resolução, garantindo maior precisão nas informações.[15], [16]
Após a geração do CAR Digital, o proprietário ou possuidor pode optar por aceitar o novo cadastro ou justificar, de forma fundamentada, a manutenção do seu CAR original. Essa metodologia tem se mostrado eficiente, permitindo ao estado dobrar o número de análises concluídas em 2024. A expectativa é que, até o final de 2025, o CAR Digital possibilite a finalização de cerca de 70% da base cadastral de Mato Grosso, acelerando o processo de regularização ambiental e promovendo resultados concretos na implementação do Código Florestal.
CAR 2.0[17]
O CAR 2.0 é uma ferramenta de inteligência geoespacial que utiliza algoritmos avançados para cruzar o perímetro dos imóveis registrados no CAR com 16 bases de dados temáticas de fontes públicas, imagens de satélite, modelagem computacional e informações ambientais com filtros baseados no Código Florestal. Seu objetivo principal é avaliar a conformidade ambiental dos imóveis em relação às disposições do Código Florestal, sem considerar os dados declarados ou dos documentos apresentados no CAR.[18] , [19] Essa abordagem pode ser particularmente útil como uma etapa preliminar de análise, oferecendo um panorama inicial sobre a situação dos imóveis. A ferramenta já foi adotada em estados como Minas Gerais e Pará.
No entanto, a ausência de validação direta dos dados declarados no CAR limita sua aplicação para finalidades que exigem informações geoespaciais validadas nos cadastros para o monitoramento da recuperação de passivos ou para obter benefícios pelas áreas preservadas. Por essa razão, o CAR 2.0 pode ser complementado por análises manuais ou outras ferramentas que validem ou retifiquem os dados declarados, como a análise dinamizada. Além disso, a independência do CAR 2.0 em relação ao Sicar, embora permita certa flexibilidade, pode dificultar sua adoção em âmbito nacional já que os sistemas não estão interligados e os resultados do CAR 2.0 não entram no sistema nacional.
Desafios na análise do CAR
O número de cadastros com análise iniciada varia muito entre os estados; alguns já estão bem avançados nessa etapa enquanto outros a iniciaram recentemente e não ganharam escala. Considerando o país como um todo, mais de 1,1 milhão de CARs já passaram por análise, seja manual ou automatizada, representando cerca de 15% de todos os cadastros no Brasil. [20]
Apesar dos avanços nos números de CARs com análises iniciadas, ainda há uma grande diferença entre a quantidade de cadastros que entram no fluxo de análise e aqueles que completaram todo o ciclo, com as informações homologadas pelo órgão competente. Atualmente, apenas cerca de 3,3% dos cadastros em todo o país tiveram a análise concluída, seja por equipe ou pelo sistema de análise dinamizada.
As principais dificuldades enfrentadas pelos estados são: (i) baixa qualidade dos cadastros; (ii) dificuldades na comunicação com proprietários e possuidores para solicitar retificações e complementações nas informações cadastrais; (iii) ausência de equipe própria dedicada à análise ou equipe técnica reduzida para essa função; (iv) bases cartográficas de referência insuficientes para subsidiar as análises e (v) desafios na adoção de ferramentas de automatização.
Além disso, alguns problemas relacionados ao Sicar agravam esses desafios. O sistema sofreu com mudanças importantes de suporte e gestão, impactando o seu desempenho. Embora a arquitetura do sistema tenha sido construída com tecnologia avançada à época do seu desenvolvimento, hoje, essa infraestrutura precisa de modernização. Outro entrave é que o Sicar também foi projetado para operar como um sistema fechado, o que dificulta a customização dos módulos pelos estados. Há também barreiras técnicas para a integração da base de dados do CAR com outras bases públicas, como o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Incra.
Esses desafios, no entanto, têm sido enfrentados pelo MGI através de melhorias na infraestrutura e adoção de soluções tecnológicas mais modernas. Ferramentas que permitam a customização, o desenvolvimento de novos módulos já concebidos para compartilhamento e o uso de interfaces de programação que ampliem a interoperabilidade e facilitem o cruzamento de dados são exemplos promissores.
É essencial evitar que essas questões sejam enfrentadas de forma isolada pelos estados ou por meio de soluções imediatistas. Atualizações incrementais, aproveitando a infraestrutura existente, reduzem custos e minimizam os riscos de descontinuidade, que podem comprometer a estabilidade do sistema, o acesso aos dados do CAR e os avanços na regularização ambiental.
[1] Lopes, Cristina L., Nina Amir Didonet, Ana Flávia Corleto e Joana Chiavari. Onde Estamos na Implementação do Código Florestal? Radiografia do CAR e do PRA nos Estados Brasileiros — Edição 2024. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2024. bit.ly/4iE38OL.
[2] Sobre isso: Walendorff, Rafael. Brasil tem 74 milhões de hectares de excedente de vegetação nativa preservada. Globo Rural. 2024. Data de acesso: 16 de dezembro de 2024. bit.ly/4gdGcnV.
Agência Senado. Debate mostra que implementação do Código Florestal e do CAR ainda é desafio. 2024. Data de acesso: 16 de dezembro de 2024. bit.ly/41C0i6B.
Vivas, Fernanda. STF faz audiência para acompanhar medidas de governos no combate a incêndios no Pantanal e Amazônia. g1. 2024. Data de acesso: 16 de dezembro de 2024. bit.ly/4ffkv5q.
[3] SFB. Nota Técnica nº 35/2018/GECAF/DCF/SFB. 2018. bit.ly/3DlVJU8.
[4] Decreto nº 8.975, de 24 de janeiro de 2017 – Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério do Meio Ambiente. bit.ly/4iBjhUZ.
[5] O art. 3º do Decreto nº 11.731/2023 altera o anexo I do Decreto no 11.437/2023 para incluir o art.14-A cujo inciso IV estabelece a articulação entre MGI e MMA para aprimoramento da infraestrutura tecnológica do Sicar. Atualmente, as competências do MGI são regulamentadas pelo Decreto no 12.102/2024.
[6] Neste documento, entende-se por análise todas as ações necessárias para verificar e corrigir as informações declaradas no cadastro, até que ele não tenha inconsistências e possa ser considerado válido. Ao longo do procedimento de análise, o cadastro pode ficar ativo, pendente, ou ser cancelado. Instrução Normativa nº 2/MMA, de 06 de maio de 2014 – Dispõe sobre os procedimentos para a integração, execução e compatibilização do Sicar e define os procedimentos gerais do CAR. Art. 51. bit.ly/47LzOPt.
[7] Ibid., Art. 42.
[8] Ibid., Art. 42.
[9] Informações detalhadas sobre as estratégias de cada estado podem ser encontrados em Lopes, Cristina L., Nina Amir Didonet, Ana Flávia Corleto e Joana Chiavari. Onde Estamos na Implementação do Código Florestal? Radiografia do CAR e do PRA nos Estados Brasileiros — Edição 2024. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2024. bit.ly/4iE38OL.
[10] Instrução Normativa nº 2/MMA, de 06 de maio de 2014 – Dispõe sobre os procedimentos para a integração, execução e compatibilização do Sicar e define os procedimentos gerais do CAR. Art. 43. bit.ly/41xzYKQ.
[11] SFB. Análise Dinamizada do Cadastro Ambiental Rural – Carta Informativa. 2021. bit.ly/4flwqhW.
[12] SFB. Manual da Retificação Dinamizada do Sistema de Cadastro Ambiental Rural – SICAR. 2023. bit.ly/3DgCfQC.
[13] SFB. Manual da Central do Proprietário/Possuidor do Sistema de Cadastro Ambiental Rural – SICAR. 2023. bit.ly/4iF54.9r.
[14] SAA. Programa Agro Legal – A análise dinamizada do Cadastro Ambiental Rural (CAR). 2020. bit.ly/4gF6E9N.
[15] Decreto nº 780, de 27 de março de 2024 – Dispõe sobre o CAR-DIGITAL e o procedimento de análise automatizada do Cadastro Ambiental Rural, no âmbito da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema). bit.ly/3CbfPzC.
[16] Mariano, Júlia, Weslei Butturi, Ana P. Valdiones e Vinicius de F. Silgueiro. Consideração sobre os módulos de análise automatizada do cadastro ambiental rural. Mato Grosso: Instituto Centro Vida, Instituto Clima e Sociedade, 2024. bit.ly/414bmt4.
[17] O nome “CAR 2.0” pode gerar interpretações equivocadas, pois não se refere a uma nova base do CAR ou a uma versão avançada da base de dados existente, mas a uma plataforma de avaliação da conformidade ambiental dos imóveis.
[18] IEF e UFMG. CAR 2.0: Impulsionando a Análise do Cadastro Ambiental Rural (CAR) com ciência e tecnologia no estado de Minas Gerais. 2024. bit.ly/4ggT6RM.
[19] Mariano, Júlia, Weslei Butturi, Ana P. Valdiones e Vinicius de F. Silgueiro. Consideração sobre os módulos de análise automatizada do cadastro ambiental rural. Mato Grosso: Instituto Centro Vida, Instituto Clima e Sociedade, 2024. bit.ly/414bmt4.
[20] Dados de análise dos cadastros para cada unidade federativa podem ser encontrados em Lopes, Cristina L., Nina Amir Didonet, Ana Flávia Corleto e Joana Chiavari. Onde Estamos na Implementação do Código Florestal? Radiografia do CAR e do PRA nos Estados Brasileiros — Edição 2024. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2024. bit.ly/4iE38OL.