Ao longo das últimas décadas, o Brasil acumulou expressiva e bem-sucedida experiência com políticas públicas de conservação de florestas tropicais, particularmente aquelas de combate ao desmatamento em corte raso.[1] Tal foco de atuação justificava-se ante a urgência para reduzir as maiores taxas de perda de floresta tropical do mundo.[2] No entanto, o desmatamento não é o único dano ambiental que assola a Amazônia Brasileira. A degradação florestal, fenômeno caracterizado pela perda gradual de vegetação, desponta como uma ameaça cada vez mais relevante na região.[3],[4] Ainda que processos de degradação possam parecer menos destrutivos do que aqueles de desmatamento, o combate à degradação deve ser uma prioridade para a política pública de conservação brasileira. Afinal, a interrupção da perda florestal em estágio mais inicial potencializa a capacidade de conservação da vegetação nativa no longo prazo.
Hoje, contudo, a degradação florestal é ainda um tema relativamente pouco conhecido e, portanto, raramente priorizado no âmbito de políticas públicas destinadas à proteção de vegetação nativa no Brasil. Um melhor entendimento da degradação na Amazônia e particularmente da sua relação empírica com o desmatamento em corte raso é um insumo chave no processo de decisão para alocação de recursos escassos para a execução da política pública. Com ele, o Brasil poderia focalizar esforços de maneira mais eficiente e reagir à degradação em tempo hábil.
Visando contribuir para uma compreensão mais robusta desse fenômeno, pesquisadores do Climate Policy Initiative/PUC-Rio (CPI/PUC-Rio) caracterizaram empiricamente a dinâmica de degradação e sua relação com processos de desmatamento em corte raso na Amazônia. Este Destaque traz uma breve introdução ao tema da degradação tropical, resume os principais resultados do estudo e aponta alguns caminhos oportunos tanto para análise futura quanto para a política pública. Além de corroborar a relevância do fenômeno para a Amazônia Brasileira, o estudo indica que a degradação tem uma relação próxima com o desmatamento. Em particular, os resultados mostram que essa relação exibe expressiva variação entre categorias fundiárias, reforçando a necessidade de uma abordagem diferenciada da política pública de conservação florestal conforme diferentes estruturas de governança.
O QUE É A DEGRADAÇÃO FLORESTAL?
Neste projeto, define-se a degradação florestal como a perda parcial de biomassa florestal. A Figura 1 ilustra, de forma simplificada, esse processo. Partindo de uma floresta intacta, a degradação mina a integridade da cobertura vegetal através da remoção gradual da vegetação ao longo do tempo. Assim, apesar de ainda conter floresta primária, uma área degradada não possui as mesmas estrutura florestal, resiliência e funções de uma floresta intacta.[5] À medida que a degradação avança, a perda de biomassa florestal se aproxima daquela observada em um cenário de desmatamento em corte raso, em que há remoção total, ou quase total, da cobertura vegetal.
O processo representado na Figura 1, em que uma floresta intacta passa por diversos estágios de degradação e culmina no desmatamento em corte raso, é apenas um dos caminhos possíveis para uma área degradada. A degradação pode ocorrer de forma mais ou menos gradual ao longo do tempo, dependendo do tipo de atividade que causa essa degradação. Além disso, a degradação não conduz necessariamente ao desmatamento em corte raso — uma área degradada pode ser intencionalmente mantida apenas com remanescente parcial de vegetação primária, ou pode passar por um processo de regeneração e conter uma mistura de remanescente primário e vegetação secundária.
A DEGRADAÇÃO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA
PRINCIPAIS CAUSAS
No Brasil, as práticas comumente associadas à degradação tropical são extração madeireira e queimadas. A extração madeireira requer o corte de espécies específicas de árvores, tipicamente selecionadas com base no valor comercial da sua madeira. Além da perda de vegetação resultante da extração em si, costuma haver comprometimento da biomassa também no entorno das árvores cortadas, devido tanto à abertura de estradas de acesso e pátios de estocagem quanto ao dano ocasionado pela queda das árvores sobre vegetação próxima. Atividades lícitas de extração madeireira devem seguir um plano de manejo para minimizar esse efeito colateral.
Já as queimadas costumam destruir primeiro plantas mais frágeis e, após repetidas queimas do mesmo local, avançar sobre as mais resistentes. Como florestas tropicais são úmidas, elas não queimam facilmente de uma só vez. O primeiro contato com o fogo consome a vegetação mais frágil e compromete a resiliência da remanescente, que se torna mais vulnerável a queimadas subsequentes.
A análise conduzida pelo CPI/PUC-Rio usa dados do DEGRAD, produto do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que utiliza imagens de satélite para produzir mapas anuais de áreas degradadas em toda a Amazônia Brasileira entre 2007 e 2016. Como o DEGRAD não oferece uma classificação consistente do tipo e tampouco do estágio de degradação observada, a análise empírica atualmente não contempla essa classificação.
CARACTERÍSTICAS GERAIS
A degradação florestal é um fenômeno de magnitude expressiva na Amazônia, tipicamente afetando uma área bem maior do que o desmatamento em corte raso. Entre 2007 e 2016, registrou-se uma média de 11.000 km2 de floresta degradada por ano. Isso equivale ao dobro da média anual de área desmatada nesse período. Enquanto o avanço do desmatamento apresentou relativa estabilidade, principalmente de 2009 a 2016, a degradação variou consideravelmente entre anos. O total de área degradada por ano atingiu o mínimo de 2.700 km2 em 2014 e o máximo de 23.700 km2 em 2016.
O padrão de ocorrência espacial indica que a degradação florestal é geograficamente concentrada ao longo do Arco do Desmatamento, que historicamente hospeda também a maior parte das áreas desmatadas na Amazônia.[6] Juntos, os estados do Mato Grosso e do Pará reúnem, em média, 75% da área degradada e 64% da área desmatada a cada ano na Amazônia. Apesar dessa concentração regional, o fenômeno apresenta baixa reincidência local ao longo dos anos. Uma mesma área é classificada como degradada, em média, uma única vez durante o período de análise.
Além disso, para a Amazônia como um todo, parece haver relativamente pouca conversão da degradação em desmatamento dentro do período de análise. Em média, apenas 9% das áreas degradadas são convertidas em desmatamento em até três anos, tempo médio entre a ocorrência desses dois eventos. Não se deve concluir, contudo, que não há relação próxima entre os fenômenos de degradação e desmatamento. Afinal, por se tratar de uma média para toda a Amazônia, o baixo percentual de conversão pode ocultar diferenças importantes quanto às intenções por trás de diferentes padrões de conversão de floresta e, consequentemente, também quanto à forma como essa conversão é executada. Essa ressalva motivou uma investigação da relação entre degradação e desmatamento de acordo com a classe fundiária em que os fenômenos ocorrem.
DEGRADAÇÃO E DESMATAMENTO POR CATEGORIA FUNDIÁRIA
O recorte por categoria fundiária visa agrupar territórios que são mais semelhantes em relação às normas que os regem e, portanto, também à forma como os agentes que lá estão interagem com a floresta. A análise considera sete categorias fundiárias: propriedades privadas pequenas, propriedades privadas médias ou grandes, território protegido (unidades de conservação e terras indígenas), assentamentos rurais, terras públicas não designadas, terras não identificadas (para as quais não há informação disponível sobre categoria fundiária) e outros (que reúne categorias residuais).
A Figura 2 apresenta a distribuição do desmatamento e da degradação anuais entre as categorias fundiárias. A distribuição do desmatamento é bastante estável entre anos, com parcelas semelhantes do dano anual ocorrendo em propriedades privadas (principalmente as médias ou grandes), assentamentos rurais e terras públicas não designadas. Já a degradação apresenta expressiva variação entre categorias e anos. Grande parte da degradação ocorre dentro de propriedades privadas médias ou grandes e, em menor grau, em terras não identificadas. A menor participação de pequenas propriedades privadas e de assentamentos rurais e a maior participação de territórios protegidos contrastam, ainda, com o padrão observado para o desmatamento.
Figura 3. Degradação e Desmatamento por Categoria Fundiária, 2007-2015
Nota: Os gráficos apresentam a fração da área degradada em cada ano e categoria fundiária que foi sucedida de desmatamento em até três anos. Foram consideradas áreas desmatadas no mesmo local em que houve degradação (conversão de degradação em desmatamento) e no seu entorno (desmatamento próximo à degradação).
Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do DEGRAD/INPE, PRODES/INPE, Atlas Agropecuário/Imaflora e Cadastro Nacional de Florestas Públicas/Serviço Florestal Brasileiro, 2021
Há, afinal, um padrão de degradação seguida de desmatamento em alguma dessas categorias fundiárias? A Figura 3 sugere que sim. Ainda que a conversão local da degradação em desmatamento se mantenha baixa ou moderada em todas as categorias fundiárias, os dados apontam para expressiva ocorrência de desmatamento posterior à degradação no entorno da área degradada. Nesse sentido, a degradação pode não ser um precursor para o desmatamento naquele exato local, mas ela pode servir como um alerta de que aquela região será alvo de práticas de desmatamento em breve.
A Figura 3 indica, ainda, que a relação entre degradação e desmatamento varia entre categorias fundiárias. Apesar de não ser possível identificar os motivos por trás dessas diferenças a partir dos dados utilizados no estudo, a análise levanta algumas interpretações prováveis. Observam-se três principais padrões. Primeiro, a conversão de áreas degradadas em desmatamento é consistentemente baixa em territórios protegidos, mesmo levando em conta o desmatamento que ocorre no entorno da degradação. Considerando que a proteção desses territórios advém de punições mais severas para crimes ambientais neles cometidos, uma possível explicação para essa baixa conversão é que avançar com a remoção total da vegetação, que carrega maior risco de detecção, simplesmente não compensa.
Segundo, e no outro extremo, pequenas propriedades privadas e assentamentos rurais exibem expressiva ocorrência de degradação seguida de desmatamento próximo. Nessas categorias, até a conversão local de degradação em desmatamento é relativamente alta. É provável que esse padrão esteja relacionado ao alto custo de desmatar uma floresta tropical. Para pequenos proprietários e assentados, que tipicamente não têm acesso a volumosos recursos financeiros, a degradação pode servir como uma forma de remover a cobertura vegetal aos poucos e com menor custo.
Terceiro, propriedade privadas médias ou grandes, áreas públicas não designadas e áreas não identificadas apresentam um padrão intermediário. A conversão local de degradação em desmatamento é baixa, mas há evidência de que uma fração moderada da área degradada está próxima de locais que serão desmatados. Especula-se que essas categorias sejam menos homogêneas do que as discutidas anteriormente e que, portanto, o padrão detectado englobe uma variedade de perfis de degradação e desmatamento.
Por fim, há indícios de que a parcela da degradação sucedida por desmatamento local ou no entorno cresceu nos anos finais da amostra em todas as categorias fundiárias. Isso pode apontar para uma crescente relevância da degradação como precursor e, portanto, indicador do desmatamento.
PRÓXIMOS PASSOS PARA PESQUISA E POLÍTICA PÚBLICA
Além de ocorrer em escala, a degradação florestal exibe uma relação próxima com o desmatamento em corte raso na Amazônia Brasileira. Para algumas categorias fundiárias específicas, ela parece ser um precursor relevante do desmatamento. A degradação pode, portanto, servir como um indicador de dano ambiental iminente e ajudar a focalizar esforços de política pública de conservação. Por outro lado, nos casos em que a degradação não se converte em desmatamento, é importante entender a motivação para se degradar um ativo ambiental sem que haja uso econômico do solo posteriormente.
Nesse contexto, a política pública deve adotar uma abordagem diferenciada, com medidas moldadas conforme as diversas práticas de conversão de floresta observadas nas diferentes categorias fundiárias. A pesquisa, por sua vez, deve apoiar o desenho e a execução da política pública, buscando entender como a estrutura de governança de cada categoria fundiária influencia padrões de degradação e subsequente desmatamento. Este estudo traz um primeiro olhar sobre como formuladores de política pública podem compreender a degradação tropical e usar esse conhecimento para fortalecer o combate à perda florestal em suas diversas manifestações.
DADOS
A análise explora um rico conjunto de dados espacialmente explícitos (raster), criado a partir de diversas fontes publicamente disponíveis. As principais variáveis e suas fontes são: áreas degradadas, proveniente do DEGRAD/INPE; áreas desmatadas, proveniente do PRODES/INPE; e malha fundiária, proveniente do Atlas Agropecuário/Imaflora e do Cadastro Nacional de Florestas Públicas/Serviço Florestal Brasileiro.
NOTA METODOLÓGICA
A análise busca caracterizar o fenômeno da degradação florestal e investigar sua relação com o desmatamento em corte raso entre 2007 e 2018. A amostra espacial engloba áreas de floresta tropical no Bioma Amazônia que foram degradadas e/ou desmatadas no período de interesse. A base de dados construída, um raster com resolução de 30 metros, contempla dados georreferenciados de degradação e desmatamento ao longo do tempo, assim como de categoria fundiária para todo o Bioma Amazônia. O estudo relaciona eventos de degradação e desmatamento tanto em uma mesma área quanto por proximidade e estratifica os resultados pelas categorias fundiárias de interesse. Devido ao grande número de observações na base de dados (quase 2 bilhões), utiliza-se um método de amostragem aleatória (variando entre 2.5% e 15% do universo de observações) para construção da base de análise.
[1] Para um resumo de avaliações de políticas de conservação: Gandour, Clarissa. Por Que Proteger a Amazônia? Climate Policy Initiative, 2019. bit.ly/2MMVLuf
[2] Hansen, Matthew C. et al. “Humid tropical forest clearing from 2000 to 2005 quantified by using multitemporal and multiresolution remotely sensed data”. Proceedings of the National Academy of Sciences 105, nº 27 (2008): 9439–9444.
[3] Rappaport, Danielle I. et al. “Quantifying long-term changes in carbon stocks and forest structure from Amazon forest degradation”. Environmental Research Letters 13, nº 6 (2018): 065013.
[4] Matricardi, Eraldo A. T. et al. “Long-term forest degradation surpasses deforestation in the Brazilian Amazon”. Science 369, nº 6509 (2020): 1378-1382.
[5] Longo, Marcos et al. “Aboveground biomass variability across intact and degraded forests in the Brazilian Amazon”. Global Biogeochemical Cycles 30, nº 11 (2016): 1639-1660.
[6] O Arco do Desmatamento refere-se a uma ampla faixa do território do Bioma Amazônia que se estende do oeste do Maranhão e sul do Pará em direção a oeste, passando por Mato Grosso, Rondônia e Acre.