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A floresta Amazônica desempenha um papel crucial na agenda climática global e na economia brasileira. Possui grande capacidade de armazenamento de carbono e provê serviços ecossistêmicos essenciais, incluindo a regulação dos padrões de chuva em escala continental. Nesse sentido, a perda de vegetação florestal afeta negativamente a biodiversidade local, o desenvolvimento econômico do país e a estabilidade climática global.

Pesquisadores do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) analisam o impacto das alterações dos padrões de chuva, causadas pelo desmatamento, na geração elétrica nacional. O estudo demonstra que o desmatamento na Amazônia afeta negativamente a capacidade e a receita da geração de eletricidade do país, alcançando, inclusive, Usinas Hidrelétricas (UHEs) situadas a quilômetros de distância do bioma Amazônia.

Esta publicação aponta, por meio de dois estudos de casos, os efeitos do desmatamento na geração elétrica tanto dentro quanto fora da Amazônia. O primeiro estudo de caso, com foco na UHE Teles Pires,[1] no estado do Mato Grosso, identifica que o desmatamento levou a uma perda mensal de geração entre 2,5% e 10%, resultando em uma redução de R$ 118 milhões na receita anual da hidrelétrica. O segundo estudo de caso investiga o impacto do desmatamento para além da região Amazônica. Ao analisar as usinas da bacia do Paraná, pesquisadores identificam uma perda de geração de cerca de 3%. Para a UHE Salto, por exemplo, a perda de geração corresponde à potencial perda de lucro anual, para a empresa controladora, de aproximadamente 10%.

A hidroeletricidade tem sido, historicamente, a principal fonte de geração do sistema elétrico brasileiro, representando 48,6% da capacidade instalada e 60,2% da geração total em 2023.[2] A energia hidrelétrica é uma fonte de geração renovável, economicamente competitiva e que traz flexibilidade operativa ao sistema elétrico. Por outro lado, é uma fonte vulnerável a alterações nos regimes hidrológicos. Desta forma, mudanças nos padrões de precipitação impactam a geração de energia hidrelétrica.

Este estudo visa salientar a conexão entre a floresta e a geração de energia, demonstrando que o impacto do desmatamento na Amazônia extrapola a área desmatada e afeta a geração hidrelétrica nacional. Nesse sentido, põe no centro do debate a resiliência da matriz elétrica brasileira, já pressionada por um panorama desafiador do ponto de vista da escassez hídrica e da maior frequência de eventos climáticos extremos. Apesar da análise realizada neste estudo ser direcionada a usinas específicas, ela levanta a hipótese de que a confiabilidade e a disponibilidade da geração hidrelétrica nacional podem ser impactadas pelo desmatamento. Ademais, o estudo identifica as regiões na Amazônia que contribuem para a geração hidrelétrica das usinas analisadas e aponta as categorias fundiárias presentes nas áreas de influência para cada usina. Ao identificar as áreas de maior relevância para a geração hidrelétrica, esta análise apresenta as áreas prioritárias para a implementação de políticas de conservação e restauração, o que permite orientar o desenho de mecanismos de financiamento efetivos e o direcionamento de recursos públicos e privados.

Os resultados ressaltam a necessidade de definir estratégias que conciliem as políticas de conservação e restauro com aquelas de geração de energia, garantindo maior integração institucional entre os temas de energia e meio ambiente. Principalmente porque grande parte do sistema de geração de energia do Brasil está exposto a este processo — 17 das 20 hidrelétricas com maior capacidade estão no caminho dos rios voadores.

Floresta e Geração de Energia: Quantificando os Rios Voadores

O fenômeno dos rios voadores é definido na literatura como as correntes de ar carregadas de umidade que, a partir da Amazônia, margeiam o leste da Cordilheira dos Andes no sentido norte-sul, transportando grande quantidade de umidade.[3],[4],[5],[6] As florestas tropicais recarregam as correntes de ar com umidade, produzindo um impacto significativo nos padrões de precipitação, o que influencia o abastecimento de água para a produção de energia. O nexo entre desmatamento e perda de geração de energia, estudado por Araújo,[7] encontra-se ilustrado na Figura 1.

Figura 1. Nexo Desmatamento e Perda de Geração de Energia

Fonte: CPI/PUC-Rio, 2024

Quando ocorre desmatamento, as correntes de ar que passam por áreas desmatadas ficam menos úmidas. Como consequência, a redução da umidade do ar diminui a incidência de chuva ao longo do trajeto. Com isso, a vazão dos rios situados ao longo das trajetórias das correntes de ar é reduzida, o que, por fim, diminui a capacidade de geração hidrelétrica nas usinas. A perda de vegetação florestal, portanto, impacta diretamente a produtividade das usinas hidrelétricas.

A Figura 2 demonstra como as correntes de ar provenientes do Oceano Atlântico atravessam a Amazônia e, em seguida, passam por regiões onde se encontra parte substancial das usinas hidrelétricas brasileiras, fundamentais para o abastecimento do sistema elétrico nacional. Das 20 hidrelétricas de maior capacidade do país, 17 estão expostas ao mecanismo dos rios voadores.

Figura 2. Hidrelétricas Brasileiras e a Trajetória dos Ventos

Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados de Copernicus-ERA5 (2023), MapBiomas (2023) e Aneel (2000), 2024

Dada a relevância da presença da hidroeletricidade na matriz elétrica brasileira e as regiões afetadas pelo nexo desmatamento-geração de energia, a alteração no padrão de chuvas em decorrência do desmatamento pode ter um impacto substancial na geração de energia do país.[8],[9] Como consequência, pode ocasionar o aumento do preço da energia, além de agravar questões ambientais, caso a geração hídrica seja substituída pela utilização de termeletricidade a partir de recursos fósseis, e de segurança energética.

Os Efeitos do Desmatamento na UHE Teles Pires

O primeiro estudo de caso analisa os impactos na Usina Hidrelétrica Teles Pires, localizada no rio homônimo, entre os estados do Mato Grosso e Pará. A escolha da UHE deve-se à sua relevância na geração de energia do país. Com início de operação em 2015, ela tem, hoje, capacidade instalada de 1.820 MW, o suficiente para abastecer uma população de 13,5 milhões de pessoas.[10]

Para estimar a influência da floresta na geração da usina, o estudo toma como base o desmatamento de aproximadamente 690 mil km², acumulado entre 1985 e 2020 no bioma Amazônia. O método aplicado aponta as regiões de floresta que impactam o regime de chuvas nas áreas de influência para a usina. É gerado, então, um cenário hipotético como se não houvesse ocorrido desmatamento. Com isso, o modelo estima o volume de chuva que teria havido nos locais de influência para a UHE Teles Pires, na hipótese de ausência de desmatamento no período analisado.[11]

Sem a ocorrência de desmatamento na região entre 1985 e 2020, a usina teria tido a capacidade de gerar, em média, entre 2,5% e 10% a mais do que foi observado.[12] Levando em conta a capacidade da usina, tais valores correspondem à oferta de energia elétrica para, ao menos, 330 mil pessoas. Ao considerar o preço de venda de energia ao longo do período (Preço de Liquidação de Diferenças – PLD), essa perda em geração de energia equivale a uma perda média de R$ 118 milhões por ano para a usina. Considerando que a perda de receita decorre da perda florestal observada no período, tal valor pode indicar a propensão de a usina investir na conservação das áreas de floresta que são relevantes para a manutenção do fluxo dos rios que a alimentam.[13]

A Figura 3 identifica uma área expressiva que tem influência para a geração de energia da UHE Teles Pires. Parte dessa área está desmatada e outra parte, conservada. Em especial, as diversas trajetórias das correntes de ar estimadas atravessam aproximadamente 177,5 km² de regiões desmatadas, o que indica a importância da adoção de políticas de restauração.

A partir da perda de receita estimada de R$ 118 milhões, verifica-se que a área da floresta Amazônica que exerce influência na geração de eletricidade em Teles Pires tem valor, na perpetuidade, de em média R$ 13 mil/km². Contudo, se focarmos apenas nos 5% de área mais relevante para a geração de energia da usina, o valor de preservar essa região da floresta sobe para R$ 33,6 mil/km².[14]

Figura 3. Impacto da Geração de Energia da UHE Teles Pires por Área

Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados de Copernicus-ERA5 (2023), MapBiomas (2023), Sicar (2023), Sigef/Incra (2023) e Funai (2023), 2024

Mapear as categorias fundiárias das áreas que afetam a geração da UHE Teles Pires é crucial para direcionar políticas de combate ao desmatamento e desenvolver mecanismos e instrumentos eficazes de conservação e restauração dessas áreas. Analisando os 25% de área florestal que mais influenciam a geração de eletricidade na UHE Teles Pires, verifica-se que Terra Indígena (TI) é a principal categoria fundiária, correspondendo a 41,6% e, em segundo lugar, estão as regiões de floresta não destinada, com 18,5% (Figura 4).

Figura 4. Distribuição das Categorias Fundiárias na Usina de Teles Pires

Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados de Copernicus-ERA5 (2023), MapBiomas (2023), Sicar (2023), Sigef/Incra (2023) e Funai (2023), 2024

Os Efeitos do Desmatamento nas UHEs da Bacia do Paraná

O segundo estudo de caso[15] aplica a metodologia adotada em Teles Pires para as três usinas hidrelétricas situadas na Bacia do Paraná (UHE Salto, UHE Salto do Rio Verdinho e UHE São Domingos) e evidencia o impacto do desmatamento na Amazônia para além do bioma. A seleção das usinas levou em conta dois critérios: a relevância da região para a oferta de eletricidade no país e o fato de serem usinas a fio d’água, ou seja, que não possuem capacidade significativa de armazenamento de água, o que permite observar o efeito direto da vazão do rio.

Como é possível observar na Figura 1, as três usinas estão localizadas a quilômetros de distância do bioma Amazônia, aspecto relevante para analisar a extensão dos efeitos do desmatamento na geração de energia. A UHE Salto e a UHE Salto do Rio Verdinho estão localizadas no Rio Verde, no estado de Goiás, e possuem, respectivamente, capacidade instalada de 116 MW e 93 MW.[16],[17] A UHE São Domingos está localizada no estado do Mato Grosso do Sul, no Rio Verde,[18] e tem capacidade instalada de 48 MW.[19] A metodologia adotada para avaliar o impacto de desmatamento nessas usinas é equivalente àquela adotada para o estudo da UHE Teles Pires. Tal como verificado no primeiro estudo de caso, a perda de energia é consequência da menor vazão do rio onde a usina está localizada, em razão da menor incidência de chuvas no local, advinda do efeito do desmatamento na floresta Amazônica.

Figura 5. Perda Acumulada de Geração de Energia e de Receita Associada das UHE Salto, UHE Salto do Rio Verdinho e UHE São Domingos, 2002-2022

UHE-SALTO
UHE-SRV
UHE-SD

Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados de Copernicus-ERA5 (2023), ONS (2023), CCEE (2023) e MapBiomas (2023), 2024

Na Figura 5, estão indicadas as perdas acumuladas tanto de energia gerada quanto da receita associada[20] para o período de 21 anos, entre 2002 e 2022, respectivamente, para a UHE Salto, a UHE Salto do Rio Verdinho e a UHE São Domingos. A perda acumulada da UHE Salto foi de 267 GWh e R$ 74 milhões no período analisado. Esses valores correspondem à perda média anual de, aproximadamente, 13 GWh/ano e R$ 3,5 milhões/ano. No ano de 2022, a geração da usina foi de 453 GWh;[21] o desmatamento provocou redução da capacidade de geração em, aproximadamente, 2,8% na média. Avaliando o demonstrativo de resultados da CTG Brasil S.A.,[22] detentora de 100% da UHE Salto, observa-se que a potência instalada do agregado de usinas controladas é de 7.600 MW; dos quais, 1,5% correspondem à UHE Salto. O lucro líquido referente a 2023 foi de, aproximadamente, R$ 2,7 bilhões. Supondo que todas as usinas do grupo sofram a mesma influência de perda de geração por desmatamento, o impacto no lucro líquido seria equivalente a, aproximadamente, R$ 232 milhões, ou 8,7%.[23]

Para a UHE Salto do Rio Verdinho, como mostra o segundo gráfico da Figura 5, as perdas identificadas são de 190 GWh e R$ 56 milhões. Em bases anuais, tais valores correspondem a, em média, 9 GWh/ano e R$ 2,7 milhões/ano. Para a UHE São Domingos, no terceiro gráfico da Figura 5, tais valores são de 74 GWh e R$ 27 milhões, equivalentes a 3,5 GWh/ano e R$ 1,3 milhão/ano. Apesar de não serem conhecidas as informações detalhadas da produtividade dessas usinas, nota-se que as perdas são proporcionais às suas respectivas potências instaladas, de forma que se pode conjecturar impactos semelhantes àqueles encontrados para a UHE Salto.

Como se pode observar, os efeitos do desmatamento na floresta Amazônica têm magnitude relevante para as UHEs na Bacia do Paraná, gerando um impacto em torno de 3% de perda de geração e em torno de 10% de perda de lucro. Os números salientam que o desmatamento na floresta não provoca apenas impactos pontuais no bioma Amazônia e podem trazer consequências em grande escala para todo o sistema elétrico brasileiro.

Ao focar nas regiões do bioma Amazônia que mais influenciam a geração hidrelétrica de cada usina, a Figura 6 aponta aquelas de maior impacto. Mais especificamente, o valor dos 5% de área de floresta mais relevante para a geração de energia das usinas de São Domingos, Salto e Salto do Rio Verdinho chega, respectivamente, a R$ 60/km², R$ 143/km² e R$ 105/km². É importante notar a diferença na ordem de grandeza entre tais valores e aquele encontrado para a UHE Teles Pires. O principal motivo está relacionado à dimensão das usinas. A capacidade instalada da UHE Teles Pires é mais de 15 vezes superior à da UHE Salto, a maior entre as três. Soma-se a isso o fato de que a UHE Teles Pires se encontra dentro do bioma Amazônia, potencialmente conferindo às regiões de floresta mais próximas uma influência maior em sua operação em comparação às usinas localizadas na Bacia do Paraná.

A análise da malha fundiária da área florestal que mais influencia a geração de eletricidade das UHEs da Bacia do Paraná revela que imóveis rurais privados, cadastrados no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), aparecem como a categoria fundiária mais importante em todos os casos analisados, com aproximadamente 40% do impacto nas usinas, seguida por Terras Indígenas, com aproximadamente 20% (Figura 6).

Figura 6. Distribuição de Categorias Fundiárias das UHEs Salto, Salto do Rio Verdinho e São Domingos

Nota: A distribuição fundiária é referente aos 25% de área de maior relevância para a geração de energia de cada usina. Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados de Copernicus-ERA5 (2023), ONS (2023), CCEE (2023) e MapBiomas (2023), 2024

Mecanismos de Conservação e Restauração por Categoria Fundiária

O estudo estabelece uma relação direta entre o papel da floresta Amazônica e o potencial de geração das usinas hidrelétricas. Nesse sentido, identificar as categorias fundiárias das áreas de maior interesse é fundamental para entender quais são as políticas públicas mais relevantes e os instrumentos de financiamento que podem ajudar na conservação e/ou restauração florestal dessas áreas.

A região Amazônica é composta por um mosaico de categorias fundiárias, incluindo: Terras Indígenas (TIs); Unidades de Conservação (UCs); assentamentos da reforma agrária; florestas públicas não destinadas e imóveis privados. Com exceção dos imóveis privados, todas as demais categorias fundiárias são de domínio público, assim, o poder público tem um papel relevante na gestão dessas áreas. Órgãos de controle, incluindo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), Polícias Federal e estaduais, Exército e Força Nacional de Segurança Pública, são essenciais nas ações de comando e controle contra desmatamentos ilegais. Além disso, a área pode ser de domínio público federal ou estadual, trazendo uma camada extra de complexidade na governança de terras.

As TIs despontam como a categoria fundiária de maior relevância para a UHE Teles Pires e são também importantes para as UHEs da Bacia do Paraná. TIs são áreas de domínio da União, mas de usufruto exclusivo dos povos indígenas, que são os responsáveis diretos pela gestão territorial e ambiental de suas terras. As TIs ocupam áreas muito extensas e, portanto, é um grande desafio protegê-las contra invasões ilegais de terceiros. Nesse sentido, atividades de monitoramento e fiscalização pelo poder público são essenciais para a proteção da floresta. Além das ações de comando e controle, a demarcação de TIs e a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) devem ser fortalecidas. Como as TIs são as áreas mais bem conservadas, os indígenas devem ser beneficiados por programas de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), REDD+ e doações para garantir o seu modo de vida e reprodução cultural.

Floresta pública não destinada é a segunda categoria fundiária mais relevante para a UHE Teles Pires. Essas áreas apresentam um desafio muito maior de gestão, pois, como não têm destinação específica, são mais vulneráveis à grilagem e desmatamento ilegal. Atualmente, a Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais, sob a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), é a instância responsável pela destinação das áreas federais, enquanto órgãos de terras dos estados são responsáveis pela gestão das áreas estaduais. A conservação da floresta dependerá da destinação que lhe for dada; se for destinada para titulação privada, há um risco maior de desmatamento para a prática de atividades produtivas. Nesse sentido, políticas de desenvolvimento rural sustentável e instrumentos financeiros para garantir a conservação serão fundamentais. A destinação de terras públicas para a criação de UCs, regularização fundiária de Povos e Comunidades Tradicionais (PCT) e concessão florestal de manejo sustentável ou restauração poderia, em princípio, garantir uma melhor conservação da área.

Imóveis rurais privados, cadastrados no Sigef, aparecem como a categoria fundiária mais importante para as UHEs da Bacia do Paraná. A conservação e restauração florestal nessas áreas depende, essencialmente, da implementação do Código Florestal que impõe obrigação de conservação e/ou recuperação dos passivos de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reserva Legal (RL). Linhas de financiamento especiais para agricultura sustentável, incluindo manejo de pastagens, Sistemas Agroflorestais (SAFs) e integração lavoura-pecuária-floresta (iLPF) podem ajudar a fazer uma transição para um modelo de produção mais alinhado à conservação. Além disso, instrumentos econômicos para conservar e restaurar a floresta, como PSA e mercado de carbono, serão fundamentais para incentivar não só o cumprimento do Código Florestal, mas sobretudo para ir além do que é exigido por lei.

As UCs aparecem como a terceira categoria mais importante tanto para a UHE Teles Pires quanto para as UHEs da Bacia do Paraná. Políticas e estratégias de conservação e/ou restauração florestal nas UCs devem ser diferenciadas, dependendo se são de proteção integral ou de uso sustentável. UCs de proteção integral dependem, essencialmente, de ações de comando e controle para combater o desmatamento. Já a restauração de áreas desmatadas pode ser feita por meio de parceria com o setor privado através de concessão florestal para restauro ou outros modelos de parceria. Nas UCs de uso sustentável, onde há presença de povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares, a conservação e restauração florestal dependerá não só de políticas públicas de conservação, mas sobretudo de inclusão rural e produção sustentável. Políticas de assistência técnica para o desenvolvimento de cadeias de produtos compatíveis com a floresta devem ser priorizadas. Além disso, mecanismos que remunerem a conservação, como PSA, REDD+ e mercado de carbono, também podem ter um papel importante.

Por fim, os assentamentos são a categoria fundiária menos relevante para as hidrelétricas deste estudo, mas ainda assim têm importância no contexto amazônico. Os assentamentos podem ser divididos em duas categorias: projetos de assentamento tradicional e projetos de assentamento ambientalmente diferenciados. Os projetos de assentamento tradicional são divididos em pequenos lotes e são ocupados por agricultores familiares. O Código Florestal é a principal política de conservação e restauração nessas áreas, mas sua implementação depende da assistência do poder público. Políticas de inclusão rural e de agricultura sustentável também são essenciais para alinhar produção com conservação. Os projetos de assentamento ambientalmente diferenciados são similares às UCs de uso sustentável, possuem áreas bem mais extensas que os projetos de assentamento tradicional e são destinados, principalmente, para PCT. Nesse sentido, se aplicam as mesmas observações e recomendações que foram mencionadas nas UCs de uso sustentável.

Implicações para Política Pública

Os resultados desta publicação indicam que os impactos do desmatamento não estão limitados ao bioma Amazônia ou às suas fronteiras, sendo também observados a quilômetros de distância da região. As evidências sugerem que o desmatamento influencia significativamente na capacidade de geração hidrelétrica do país, um patrimônio central e estratégico para o desenvolvimento econômico e social. A manutenção da floresta em pé, portanto, pode proporcionar uma maior capacidade de geração de energia, com impacto em escala nacional. 

A partir da ótica do setor privado, a redução da capacidade de geração de eletricidade individual das usinas está diretamente vinculada ao menor fluxo de receita, potencialmente afetando os lucros dos empreendimentos e comprometendo sua sustentabilidade financeira.

Do ponto de vista público, os efeitos observados têm o potencial de impactar de forma significativa a matriz hidrelétrica nacional, prejudicando a segurança energética do país, dada a menor capacidade de o Sistema Interligado Nacional (SIN) suprir a demanda de eletricidade nacional. Como consequência, o despacho em menor escala das usinas de base hídrica pode levar a maior demanda por usinas térmicas, que, além de possuírem maior custo de operação, elevando o preço da energia elétrica, emitem mais gases de efeito estufa e contribuem para as mudanças climáticas.

Diante desse cenário, fica nítida a necessidade de implementar políticas de combate e controle do desmatamento e da degradação na floresta e de promoção do restauro das áreas afetadas. Os resultados dos estudos de caso salientam também a importância de o setor elétrico apoiar tais políticas, uma vez que são diretamente afetados pelas consequências do desmatamento aqui demonstradas.

De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE) para 2031, elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE),[24] o país enfrenta um panorama desafiador no que diz respeito à disponibilidade hídrica. A entidade, então, vem aprimorando seus modelos para considerar cenários de menor oferta hídrica e possíveis alterações nos regimes hidrológicos observados no país, aproximando-os da realidade operacional do sistema. A EPE sugere, inclusive, o aprofundamento do conhecimento das condições pluviométricas em âmbito nacional, de maneira que sejam criados cenários futuros que tomem como base as possíveis relações entre chuva e vazão nos rios que alimentam a matriz elétrica brasileira.

Nesse sentido, é crucial o mapeamento dos efeitos de desmatamento na matriz elétrica brasileira, com indicação das principais áreas da floresta Amazônica que contribuem para a manutenção da segurança energética no país. Para identificar as políticas e os mecanismos de financiamento mais efetivos para a conservação e/ou restauração dessas áreas, é vital considerar os perfis fundiários específicos para que haja uma adequação às necessidades de cada contexto.

Dada a relevância do nexo entre desmatamento e geração hidrelétrica, é fundamental o desenvolvimento de novos estudos na área, expandindo a análise para outras regiões do país e entendendo as possíveis interações com as dinâmicas climáticas, como, por exemplo, a influência dos fenômenos El Niño/La Niña ou os efeitos de sazonalidade de chuva. A partir do levantamento robusto de evidências sobre o nexo causal apresentado neste trabalho e o mapeamento das áreas mais significativas para os efeitos do desmatamento, será possível construir, de maneira mais precisa e abrangente, políticas direcionadas a questões tanto ambientais quanto de segurança energética.

Metodologia

Nesta seção, é detalhada a metodologia adotada para estimar a influência do desmatamento na geração hidrelétrica. Para investigar a relação entre desmatamento e precipitação, é necessário definir, em primeiro lugar, a região geográfica onde se tem interesse de investigar a variação de chuva. A partir desse ponto, são utilizados dados de satélite[25] que fornecem a velocidade e a direção das correntes de ar observadas em um certo ponto geográfico, em horário e altitude determinados.

Com base nessas informações, pode-se estimar em que ponto geográfico aquela corrente de ar estava em um passado recente, ou seja, pouco antes de chegar ao ponto de interesse. Conhecida essa localização no passado, pode-se repetir o processo e encontrar o “novo” ponto de partida de onde saiu a corrente de ar. Ao se repetir esse procedimento diversas vezes, acaba-se por encontrar os pontos percorridos por aquela corrente ao longo de um período determinado. Identifica-se, assim, todo o percurso realizado por determinada massa de ar que, em determinado momento, atravessou um ponto de interesse. Chamaremos tal percurso de trajetória retroativa. Para o propósito deste estudo, os pontos de partida de interesse são aqueles onde é relevante conhecer o padrão de chuvas, dado que essas podem influenciar a vazão do rio e, por conseguinte, a geração de energia em determinada usina.

Uma vez conhecida a trajetória, é possível identificar as porções de terra por onde passou e, logo, apontar se foram regiões de floresta, desmatadas, urbanas etc. Consequentemente, pode-se contabilizar a quantidade de floresta atravessada por tais massas de ar. Há relação positiva e significativa entre a quantidade de floresta ao longo da trajetória retroativa atravessada por determinada corrente de ar e a incidência de chuva no ponto de interesse.[26] Com isso, sabe-se que, a partir do desmatamento — e da consequente perda de vegetação capaz de recarregar a atmosfera com umidade —, tem-se a redução da precipitação no ponto de interesse. Fica estabelecido, assim, o primeiro vínculo do nexo causal: desmatamento exerce influência na precipitação ao longo da trajetória de uma massa de ar.

Para o segundo vínculo, Araújo[27] investiga como se relacionam a precipitação e a vazão do rio Teles Pires na localização da própria usina — no caso, o ponto de interesse. Utilizando dados mensais de vazão do rio na própria usina, disponibilizados pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS),[28] e os dados de chuva acumulados durante quatro meses, obtidos a partir de medições de satélite,[29] concluiu que há uma correlação positiva entre os dois: mais chuva está relacionada com maior vazão dos rios.

Finalmente, o terceiro (e último) vínculo está associado à influência da vazão do rio na geração hidrelétrica na usina, que se dá como consequência direta da energia potencial gravitacional armazenada na água do rio. Supondo que a altura da queda d’água se mantenha aproximadamente constante, a variação da potência gerada na usina será resultante, em larga medida, da variação da vazão do rio.[30] De fato, os resultados encontrados por Araújo corroboram essa afirmação, apontando para uma elasticidade de aproximadamente 1 entre as grandezas.

A partir do nexo desmatamento-geração de energia, é possível apontar a influência da (ausência de) floresta na (perda de) geração hidrelétrica. Com isso, pode-se realizar um exercício contrafactual em que se busca identificar o quanto de eletricidade teria sido gerado a mais caso não tivesse havido desmatamento. Adicionalmente, a partir da ótica da sustentabilidade financeira do empreendimento — e uma vez que a receita da usina é resultante direta da quantidade de energia gerada e de seu preço (PLD) —, pode-se estimar a receita que a usina teria obtido, caso não tivesse havido desmatamento nas regiões de floresta por onde passam as correntes de ar que influenciam a geração de energia, de acordo com o nexo causal estabelecido acima.

Uma vez que é possível rastrear as regiões por onde as correntes de ar passaram, pode-se investigar quais delas exercem maior influência no regime de chuvas de um determinado ponto de interesse. Com isso, e a partir do conhecimento das perdas energética e financeira resultantes do desmatamento, podem ser identificadas regiões de floresta prioritárias.


[1]       O estudo de caso da UHE Teles Pires começou a ser desenvolvido no CPI/PUC-Rio em 2020 por Rafael Araújo, então analista sênior. Os resultados da pesquisa foram previamente publicados em janeiro de 2024 na revista Energy Economics. Na atual publicação, o CPI/PUC-Rio apresenta os resultados na íntegra do projeto de pesquisa “Desmatamento e Geração de Energia.”

[2]        EPE. Anuário Estatístico de Energia Elétrica 2024: Ano base 2023. 2024. bit.ly/3BdxE0D.

[3]       Nobre, Antônio D. The Future Climate of Amazonia: scientific assessment report. São José dos Campos: Articulación Regional Amazônica, 2014. bit.ly/4gxLzid.

[4]       Marengo, José A. et al. “Changes in Climate and Land Use Over the Amazon Region: Current and Future Variability and Trends”. Front. Earth Sci 6 (2018). bit.ly/3UOflVT.

[5]       Marengo, José A. et al. “Climatology of the low-level jet east of the Andes as derived from the ncep-ncar reanalyses: characteristics and temporal variability.” Journal of climate 17, nº 12 (2004): 2261-2280.
bit.ly/3ZArXnr.

[6]       Araújo, Rafael e João Mourão. O Efeito Dominó da Amazônia: Como o Desmatamento Pode Desencadear uma Degradação Generalizada. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2023. bit.ly/Efeito-Domino.

[7]        Araújo, Rafael. “The value of tropical forests to hydropower”. Energy Economics 129 (2024). bit.ly/3ys5Cgl.

[8]       Cabus, Pieter. “River flow prediction through rainfall-runoff modelling with a probability-distributed model (PDM) in Flanders, Belgium”. Agricultural Water Management 95, nº 7 (2008): 859-868. bit.ly/44Tcu2H.

[9]       Makungo, Rachel et al. “Rainfall-runoff modelling approach for ungauged catchments: A case study on Nzhelele River sub-quaternary catchment”. Physics and Chemistry of the Earth 35, nº 13-14 (2010): 596-607. bit.ly/4avc9UZ.

[10]      Usina Hidrelétrica Teles Pires. Sobre a UHE Teles Pires. 2024. Data de acesso: 10 de maio de 2024.
bit.ly/3KcqBqc.

[11]       Mais detalhes sobre a estratégia de modelagem podem ser encontrados na seção de Metodologia.

[12]       Araújo, Rafael. “The value of tropical forests to hydropower”. Energy Economics 129 (2024). bit.ly/3ys5Cgl.

[13]      Araújo expande a análise para analisar o impacto da perda de geração elétrica, caso fosse compensada pelo despacho de usinas térmicas, como a carvão ou gás natural. Ao se considerar o preço de US$ 50/tCOe (R$ 280/tCOe), a perda de geração hidrelétrica por conta do desmatamento implicaria na perda extra de US$ 17,4 milhões (R$ 97 milhões). Para saber mais: Araújo, Rafael. “The value of tropical forests to hydropower”. Energy Economics 129 (2024). bit.ly/3ys5Cgl.

[14]       Araújo, Rafael. “The value of tropical forests to hydropower”. Energy Economics 129 (2024). bit.ly/3ys5Cgl.

[15]      Este estudo de caso foi realizado em cooperação com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

[16]       CTG Brasil. UHE Salto. 2024. Data de acesso: 10 de maio de 2024. bit.ly/3yqxLoe.

[17]       CBA. Nossos Ativos. sd. Data de acesso: 10 de maio de 2024. bit.ly/3yTZnlS.

[18]       Cabe ressaltar que o Rio Verde (GO) e o Rio Verde (MS) são rios diferentes, apesar de terem o mesmo nome.

[19]       Eletrobras – CGT Eletrosul. Geração. sd. Data de acesso: 10 de maio de 2024. bit.ly/3V7wMSI.

[20]      A queda na receita é resultante da perda energética multiplicada pelo PLD do período.

[21]      Informação disponível no site da CTG Brasil, detentora de 100% da usina. Para saber mais: CTG Brasil. UHE Salto. 2024. Data de acesso: 10 de maio de 2024. bit.ly/3yqxLoe.

[22]      CTG Brasil. Demonstrações Financeiras – 4T23. 2024. Data de acesso: 10 de maio de 2024. bit.ly/3RjlpVh.

[23]      Para o ano de 2022, cujo lucro foi de R$ 2,28 bilhões, a perda representaria cerca de 10,2%.

[24]      MME e EPE. Plano Decenal de Expansão de Energia 2031. Brasília, 2022. bit.ly/3VvXR1X.

[25]     Hersbach, Hans et al. ERA5 hourly data on single levels from 1940 to present. Copernicus Climate Change Service (C3S), Climate Data Store (CDS), 2023. bit.ly/3UTUFeW.

[26]      Araújo, Rafael. “The value of tropical forests to hydropower”. Energy Economics 129 (2024). bit.ly/3ys5Cgl.

[27]      Araújo, Rafael. “The value of tropical forests to hydropower”. Energy Economics 129 (2024). bit.ly/3ys5Cgl.

[28]     ONS. Dados Abertos – Dados hidráulicos por reservatório – base diária. 2022. Data de acesso: 04 de julho de 2023. bit.ly/3UPjmcA.

[29]     Hersbach, Hans et al. ERA5 hourly data on single levels from 1940 to present. Copernicus Climate Change Service (C3S), Climate Data Store (CDS), 2023. bit.ly/3UTUFeW.

[30]     Cabe mencionar que, de acordo com a demanda, a operação da usina pode atuar na vazão de água que passa efetivamente pelas turbinas, afetando parcialmente a influência direta da vazão do rio na potência gerada.


Este relatório contou com apoio financeiro de Instituto Clima e Sociedade (iCS), Instituto Itaúsa e Norway’s International Climate and Forest Initiative (NICFI).
Os autores gostariam de agradecer a Salo Coslovsky e Augusto Monnerat pelo suporte para pesquisa; Juliano Assunção, Cristina Leme Lopes, Beto Veríssimo e Natalie Hoover El Rashidy pelos comentários e sugestões; Rafael Araújo, Eduardo Minsky e grupo empírico do CPI/PUC-Rio pelas discussões; Giovanna de Miranda e Camila Calado pela revisão e edição do texto; e Meyrele Nascimento e Nina Oswald Vieira pela elaboração das figuras e formatação do texto.

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