A Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, que estabelece o regime de proteção da vegetação nativa, conhecida simplesmente por Código Florestal, é o resultado de um longo e duro processo de tramitação no Congresso Nacional. O texto aprovado reflete os conflitos existentes e os acordos alcançados entre setores com diferentes visões e interesses. Assim, o “novo” Código Florestal já nasceu repleto de controvérsias que acabaram sendo objeto de quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs)[1] e uma ação declaratória de constitucionalidade (ADC).[2]
O Supremo Tribunal Federal (STF) levou quase seis anos para decidir o destino da lei. As ADIs e a ADC foram reunidas e julgadas em conjunto pela corte, com decisão final em 28 de fevereiro de 2018. A maioria dos ministros do STF reconheceu a validade de quase todos os dispositivos questionados, declarou alguns trechos inconstitucionais e atribuiu a outros “interpretação conforme à constituição”.[3]
Enquanto as ações não eram julgadas, pairava no país uma grande insegurança jurídica, tanto por parte do poder público estadual, que precisava tomar uma série de providências para implementar a lei, como por parte dos produtores rurais, que não tomavam nenhuma decisão relativa à regularização dos passivos, pois não sabiam se as novas regras seriam validadas pela suprema corte.
Havia uma grande expectativa de que, uma vez julgadas as ADIs, as controvérsias seriam resolvidas e a lei poderia, enfim, sair do papel. Entretanto, à medida que os estados regulamentavam o Código Florestal e seus instrumentos, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA), e implementavam a lei no estado, novas controvérsias foram surgindo.
Controvérsias jurídicas são decididas, em última instância, pelo poder judiciário. Mas, em regra, processos judiciais no Brasil demoram muitos anos até uma decisão definitiva, sobretudo quando se trata de questões complexas, como nos casos referentes ao Código Florestal. Essa situação mantém um ambiente de insegurança jurídica permanente que vem afetando a implementação da lei em todo o país.
Nessa nota técnica, pesquisadoras do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) mapeiam as principais controvérsias jurídicas, ainda pendentes de solução pelo poder judiciário, e analisam seus impactos na implementação da lei, com dados e exemplos concretos de paralisações nos estados. Esta publicação trata das seguintes questões: (i) aplicação do Código Florestal ou da Lei da Mata Atlântica nas áreas rurais consolidadas; (ii) regulamentação e aplicação do artigo 68 do Código Florestal; (iii) revisão dos termos de compromisso firmados sob a vigência do Código Florestal anterior; e (iv) indefinição dos critérios ambientais para implementação da Cota de Reserva Ambiental.
É importante ressaltar que esta nota técnica não pretende esgotar o assunto, mas apenas detalhar as principais controvérsias que vêm afetando de forma mais imediata a implementação do Código Florestal. O CPI/PUC-Rio possui um projeto de monitoramento contínuo e permanente da implementação da lei em todo território nacional e, por meio do levantamento de informações coletadas diretamente junto aos estados, são identificadas outras questões que também geram insegurança jurídica e podem vir a ser judicializadas no futuro.[4]
Lei da Mata Atlântica vs. Código Florestal
Controvérsia jurídica
O Código Florestal estabelece um regime jurídico específico para as áreas rurais consolidadas: áreas desmatadas ilegalmente em Áreas de Preservação Permanente (APP) ou Reserva Legal e ocupadas com atividades agrossilvipastoris antes 22 de julho de 2008. Nestas áreas, a obrigação de recomposição dos passivos é reduzida, seja em razão do tamanho da propriedade, seja em razão do tipo de APP considerada.[5]
Ocorre que, como o Código Florestal não revogou expressamente a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006), a aplicação destas regras em propriedades com déficit de vegetação em APP em razão de desmatamentos ocorridos antes de 22 de julho de 2008 passou a enfrentar questionamentos.
Sendo a Lei da Mata Atlântica uma norma específica – e mais restritiva –, ela deveria se sobrepor ao Código Florestal, afastando a incidência do regime previsto pelo Código para as áreas rurais consolidadas? Ou sua aplicação deveria ser efetuada de forma complementar ao Código Florestal?
Trata-se de uma questão que afeta diretamente o regime das áreas rurais consolidadas em APPs, sendo decisiva no sentido de (i) definir quais atividades são (ou não) permitidas nestas áreas e (ii) qual o regime de reposição florestal e/ou de compensação por desmatamento ocorrido nestes locais.
Ao longo do tempo, foram emitidos diferentes pareceres e despachos pela consultoria jurídica do Ministério do Meio Ambiente (MMA), ora opinando pela prevalência do Código Florestal, ora pela prevalência da Lei da Mata Atlântica. Mais recentemente, em 2019, a Advocacia Geral da União (AGU) editou um parecer opinando pela prevalência do Código Florestal. Este parecer da AGU seria vinculante para todos os órgãos da administração pública federal, incluindo o MMA.[6]
Esta última mudança de posicionamento provocou uma enorme reação contrária, não só de entidades ambientalistas, como também dos Ministérios Públicos Federal (MPF) e Estadual (MPE), que ajuizaram ações civis públicas pedindo a nulidade do despacho e solicitando a suspensão da homologação dos cadastros ambientais rurais pelos órgãos ambientais competentes.
Como reação, o governo federal ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6446) pedindo que o Supremo decidisse pela prevalência das regras do Código Florestal. A ação ainda não possui decisão definitiva, encontra-se na fase de análise das manifestações das partes e dos diversos pedidos de amicus curiae[7] formulados. As ações civis públicas estaduais, movidas pelo MPF, também aguardam julgamento final.
Impacto na implementação da lei nos estados
Enquanto isso, os 17 estados brasileiros que possuem parte ou totalidade do território inserido na Mata Atlântica vivem uma situação de insegurança jurídica na análise e validação dos CARs, dificultando também a implementação dos PRAs. E para além destes, a controvérsia pode também atingir outros biomas como o Pampa, onde existe discussão judicial semelhante.[8]
O Paraná é um exemplo de como esta questão tem impactado a implementação do Código Florestal. Este estado estava avançando bastante na análise e validação dos CARs: em 2020, já havia analisado e validado cerca de 10 mil cadastros e mantinha uma rotina de análises mensais de cerca de 450 cadastros.[9] Entretanto, uma decisão judicial (em caráter liminar), emitida em 05 de agosto de 2020 em uma das ações civis públicas movidas pelo MPF, suspendeu a homologação dos cadastros no estado. Em junho de 2021, a liminar foi cassada e o órgão ambiental estadual voltou a analisá-los.[10] Situação similar ocorreu também em Santa Catarina.[11]
Já no Estado do Ceará, os dados indicam que o órgão ambiental optou por priorizar a análise de cadastros fora da região costeira, onde há incidência de ecossistema integrante do bioma Mata Atlântica, de forma a evitar o mérito desta questão no momento atual.
Por outro lado, outros estados optaram por prosseguir com a validação de CARs, inclusive com a emissão de normas próprias para implementação de seus respectivos PRAs, como é o caso de São Paulo e do Rio de Janeiro.[12]
Como cada um destes estados regulamentou a questão de uma maneira, a matéria passou a ser tratada de forma desigual no território nacional. Porém, todos estes estados serão impactados ao final, quando o assunto for enfrentado de forma definitiva pelo STF.[13]
Artigo 68 do Código Florestal: aplicação da lei no tempo para definição do percentual de Reserva Legal
Controvérsia jurídica
O artigo 68 da Lei nº 12.651/2012 dispõe que estão isentos de recompor a Reserva Legal os proprietários que realizaram a supressão de vegetação nativa respeitando os percentuais de Reserva Legal previstos na legislação em vigor à época da supressão. Mas como a legislação florestal brasileira remonta ao ano de 1934, tendo sofrido diversas modificações ao longo dos anos, principalmente após o Código Florestal de 1965, a questão passa a ser: qual efetivamente é o marco temporal que deve ser adotado para definir se uma determinada propriedade tem ou não a obrigação de recompor suas áreas de Reserva Legal.
Quanto mais antiga é a ocupação do solo, mais relevante e difícil é a aplicação desta regra, uma vez que é necessário ter bases cartográficas e documentos que comprovem quando ocorreu a efetiva ocupação, além de definir a tipologia de vegetação que foi efetivamente desmatada.
A questão do marco temporal é um problema que se agrava, por exemplo, nas áreas de Cerrado – tipologia vegetal que não havia sido mencionada de forma expressa pelas normas anteriores a 1989,[14] época em que grande parte desse bioma já havia tido seu uso convertido para atividades agrossilvopastoris em São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais.[15] Outras regiões também sofrem impactos dessa controvérsia, como o caso da Amazônia, onde o regime de Reserva Legal foi alterado, em 1996, para tentar conter o aumento do desmatamento da região.
Assim, a regulamentação e implementação do artigo 68 do Código Florestal pelos estados é complexa e de difícil execução. A indefinição de como aplicar esta regra tem contribuído para atrasar a regularização dos passivos de Reserva Legal.
Impacto na implementação da lei nos estados
São Paulo, por exemplo, regulamentou o artigo 68 em lei estadual, estabelecendo quais marcos temporais devem ser considerados para o cálculo da Reserva Legal.[16] A lei estadual restringiu o conceito de vegetação nativa contido no artigo 68 da lei federal, limitando sua incidência a matas e florestas, excluindo a proteção do Cerrado nos marcos temporais de 1934 e 1965.[17] Embora o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tenha declarado a constitucionalidade deste artigo da lei,[18] o Ministério Público estadual interpôs um recurso extraordinário contra esta decisão, protocolado no STF em janeiro de 2020, sob o argumento de que o estado extrapolou sua competência legislativa.[19]
A decisão final do STF sobre este recurso será de grande importância, pois delimitará os critérios a serem observados no exercício da competência dos estados para legislar e definir os marcos legais para a aplicação do artigo 68.
Em paralelo, o estado de São Paulo editou, em 2020, o Programa Agro Legal. Este programa adota as cartas do IBGE de 1965, imagens de satélite para retratar a vegetação em 1989 e o mapa de biomas do IBGE de 2004 como referências para a regularização da Reserva Legal, nos termos do artigo 68 do código. Para implementar o programa, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA) adotou uma resolução com orientações, critérios e procedimentos para a regularização da Reserva Legal, segundo o bioma e os marcos temporais estabelecidos na lei estadual.
Além de São Paulo, Amazonas, Goiás e Paraná também criaram regras para a aplicação do artigo 68, determinando expressamente quais marcos legais devem ser observados para o cálculo do percentual de Reserva Legal. Outros estados, como Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Santa Catarina e Roraima também dispõem que o percentual de Reserva Legal deve ser seguido de acordo com a lei em vigor à época da abertura do imóvel, porém não regulamentam esta regra e não definem expressamente quais seriam os marcos legais aplicáveis.[20]
Para além da controvérsia jurídica, existem também diversas discussões sobre qual seria a base científica e técnica a ser adotada para instrumentalizar estes marcos temporais, como demonstrado em reuniões e documentos técnicos da iniciativa “Código Florestal no Estado de São Paulo”.[21]
Nesse sentido, a implementação do artigo 68 ainda se apresenta complexa, de difícil aplicação prática e com implicações concretas na regularização dos passivos de Reserva Legal dos imóveis rurais.
Revisão de Termos de Compromisso firmados na vigência do Código Florestal Anterior
Controvérsia jurídica
Na sistemática prevista pelo Código Florestal, ficou estabelecido que as propriedades devem passar pela etapa de inscrição no CAR, seguida da análise e validação deste e adesão ao PRA, aplicável a toda e qualquer área que possua passivos em relação às obrigações ambientais do Código. Os PRAs são então concluídos com a assinatura do Termo de Compromisso (TC), quando o proprietário ou possuidor efetivamente se compromete a implementar as atividades de recuperação e regularização das APPs e da Reserva Legal de seu imóvel rural.
Como o Código Florestal estabeleceu um regime jurídico mais flexível para as áreas rurais consolidadas, os proprietários que possuíam termos de compromisso firmados na vigência da lei anterior passaram a possuir obrigações mais onerosas do que aqueles que firmaram compromissos após a edição do Código Florestal.
São casos que envolvem, por exemplo, a possibilidade de cômputo de APP nas áreas de Reserva Legal (prevista no art. 15 do Código Florestal, mas vedadas na legislação anterior), o regime das áreas rurais consolidadas em APP, ou ainda as regras de compensação ou de restauração das áreas de Reserva Legal, cujo regime foi flexibilizado pela nova lei.
Buscando compatibilizar as obrigações do Código Florestal de 2012 com as obrigações ambientais anteriormente vigentes, o artigo 12 do Decreto nº 8.235/2014 dispõe que os termos de compromisso, ou outros instrumentos similares firmados na vigência da lei anterior, deveriam ser revistos para se adequarem à lei nova. Os estados também autorizaram a revisão dos termos de compromisso em suas legislações estaduais, como é o caso de São Paulo e Paraná.
No entanto, termos de compromisso são considerados pela doutrina e pela jurisprudência predominante como atos jurídicos perfeitos, e nesta qualidade não poderiam sofrer qualquer alteração, como previsto pelo artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal de 1988.[22]
A questão que se coloca é: a regulamentação do Código Florestal pelo Decreto nº 8.235/2014, prevendo a revisão dos termos de compromisso prevalece sobre o entendimento de que TCs são atos jurídicos perfeitos e não podem sofrer alteração?
O julgamento das ADINs do Código Florestal não abarcou de forma direta a análise de constitucionalidade deste artigo específico do Decreto nº 8.235/2014, mas tão somente considerou constitucionais os dispositivos que garantiram este tratamento diferenciado que foram incorporados pelo Código Florestal, como é o caso do artigo 15 (que prevê a possibilidade de cômputo de APP em RL), e dos artigos 61-A e 61-B (que tratam do regime das áreas rurais consolidadas).
No momento, proliferam no território nacional diversas ações judiciais em que este tema é discutido, com decisões distintas proferidas pelos diferentes Tribunais de Justiça, o que tem resultado num tratamento desigual não apenas em diferentes regiões do território nacional, mas também dentro destas.
As decisões de primeira e segunda instância dos tribunais de justiça estaduais divergem quanto à possibilidade de revisão dos TCs firmados na vigência do Código Florestal de 1965. Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem sido unânime em afirmar que o cumprimento de TC deve ser regido pelo Código Florestal vigente à época da celebração do acordo.[23]
Esta questão tornou-se tão importante para o STJ que, em setembro de 2020, o tribunal decidiu pela afetação de dois recursos especiais como tema repetitivo (Tema Repetitivo 1062),[24] isto é, todas as ações judiciais sobre a aplicação do novo Código Florestal foram suspensas até a decisão do STJ sobre a possibilidade de reconhecer a retroatividade da Lei nº 12.651/2012 para alcançar situações consolidadas sob a égide da legislação anterior. O resultado do julgamento do STJ sobre o tema repetitivo deveria ser aplicado por todos os tribunais. Entretanto, em outubro de 2021, o Tema Repetitivo 1062 foi cancelado, pois os ministros do STJ entenderam que não seria adequado propor uma solução jurídica única para situações diferentes. Como resultado, as ações voltaram a ser julgadas individualmente.
Nas poucas ações julgadas pelo STF, parece prevalecer o entendimento pela aplicação das regras do Código Florestal de 2012. No entanto, a questão específica da revisão dos Termos de Compromisso ainda não foi enfrentada diretamente.
Impacto na implementação da lei nos estados
A indefinição jurídica sobre a possibilidade de revisão dos termos de compromisso tem um impacto significativo em alguns estados. Por exemplo, o Paraná tem em torno de 120 mil termos de compromisso para recuperação de APP e Reserva Legal que foram pactuados na vigência do Código Florestal de 1965. Deste total, cerca de 14 mil produtores já pediram ao órgão ambiental a revisão dos termos para adequação às novas regras do Código Florestal de 2012 e estes pedidos tendem a crescer. A Procuradoria Geral do Estado do Paraná emitiu um parecer autorizando o Instituto Água e Terra (IAT) a apreciar os pedidos de revisão de termos de compromisso.[25]
Mato Grosso também possui em torno de 15 mil termos de compromisso para regularização ambiental que foram assinados em 2009, quando o CAR foi implantado no estado, e estão sendo revisados de acordo com as novas regras do Código Florestal.
Em São Paulo, a situação parece ser mais complexa. Em decisão recente, o Tribunal de Justiça do estado suspendeu a eficácia de um artigo do Decreto estadual nº 65.182/2020 que permitia a revisão de termos de compromissos ambientais sem a anuência da instituição que firmou o compromisso.[26] Assim, volta a ser exigido o aval do Ministério Público do estado de São Paulo para a revisão de tais compromissos.
Compensação de Reserva Legal por Meio de Cota de Reserva Ambiental: Critério do Bioma ou da Identidade Ecológica
Controvérsia jurídica
De acordo com o Código Florestal, a Reserva Legal é uma parte do imóvel rural na qual deve-se conservar a vegetação nativa com o propósito de assegurar o uso sustentável dos recursos naturais e a preservação da biodiversidade. A lei fixa os parâmetros mínimos de Reserva Legal, que podem variar de 20 a 80 por cento da área do imóvel rural, dependendo do bioma e da região geográfica do país.
Além disso, a lei criou o conceito de áreas rurais consolidadas em Reserva Legal: áreas que foram ocupadas irregularmente com atividades agrícolas, pastoris ou com silvicultura, antes de 22 de julho de 2008.
Para as propriedades que possuem áreas consolidadas e déficit de Reserva Legal, a lei permite a regularização por meio de quatro mecanismos distintos de compensação: (i) arrendamento de servidão ambiental ou de excedente de Reserva Legal; (ii) cadastramento de área equivalente em outro imóvel rural, pertencente ao mesmo proprietário (iii) doação de área localizada dentro de Unidade de Conservação (UC) de domínio público, pendente de regularização fundiária; e (iv) aquisição de Cota de Reserva Ambiental (CRA).
A principal função da CRA é servir como mecanismo de compensação de Reserva Legal, e com isso permitir a regularização das propriedades com passivo a um menor custo, e, ao mesmo tempo, recompensar quem preserva vegetação nativa acima dos percentuais exigidos pela lei. Assim, quem tem vegetação excedente pode emitir CRA, e quem tem déficit de Reserva Legal pode compensá-lo comprando CRA de imóveis rurais situados no mesmo bioma.
Das quatro alternativas para a compensação de Reserva Legal, a aquisição de CRA parece ser a mais vantajosa para o compensador, pois não exige a contratação de assistência técnica e jurídica, não envolve a compra nem a manutenção da vegetação nativa de outro imóvel rural e tem um procedimento de compensação de Reserva Legal que – em tese – seria mais simples que as demais opções. No entanto, para que proprietários e possuidores rurais elejam a CRA entre demais opções de compensação, ela deve ser menos burocrática, economicamente mais atrativa e principalmente segura do ponto de vista jurídico.[27]
Com isso, diversos estados passaram a prever em suas legislações a possibilidade de regularização de área consolidada em Reserva Legal por meio da compensação via CRA. É o caso dos Estados do Acre, Amazonas, Pará, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Bahia.
Embora o mecanismo da CRA tenha sido criado com o objetivo de facilitar a regularização dos passivos de Reserva Legal, há uma controvérsia sobre qual critério geográfico/ambiental deve ser usado para sua implementação: o critério do bioma ou da identidade ecológica.
O Código Florestal adotou o critério do bioma para fins de compensação de Reserva Legal, isto é, as áreas a serem utilizadas para compensação devem estar localizadas no mesmo bioma da área de Reserva Legal a ser compensada. Entretanto, este critério foi objeto de impugnação perante a suprema corte, na ocasião do ajuizamento das ADIs, em dois dispositivos: o parágrafo 2º do artigo 48 (que trata exclusivamente da CRA) e o parágrafo 6º do artigo 66 (que dispõe sobre as regras de compensação de Reserva Legal em todas as modalidades).
O problema é que a decisão proferida pelo STF nestas ADIs, com relação a estes dois dispositivos, foi contraditória. Com relação ao parágrafo 2o do artigo 48, os ministros consideraram que o critério do bioma seria excessivamente abrangente e decidiram pela interpretação conforme à constituição, de modo a permitir o uso de CRA para a compensação de Reserva Legal apenas entre áreas com identidade ecológica,[28] conceito cujo significado permanece indefinido.
Entretanto, ao analisar o parágrafo 6º do artigo 66, a maior parte dos ministros opinou pela sua constitucionalidade. Este dispositivo faz referência a todas as formas de compensação, entre as quais a aquisição de CRA.
Nesse sentido, o critério para a compensação de Reserva Legal por meio da aquisição de CRA está indefinido, pois em um dispositivo o STF adotou o critério da identidade ecológica e, em outro, validou o critério do bioma. Foram interpostos “embargos de declaração”[29] para tentar elucidar esta questão, porém até o momento não houve manifestação expressa para solucionar este impasse.
Impacto na implementação da lei nos estados
Estima-se que o déficit de Reserva Legal no Brasil seja da ordem de 11 milhões de hectares[30] mas, apesar da grande expectativa no setor com a implementação das CRAs,[31] as cotas permanecem “no papel”. Apenas o Mato Grosso do Sul conseguiu regulamentar e implementar um sistema local para gerenciar as emissões e compensações de Reserva Legal por meio de Termo de Cota de Reserva Ambiental Estadual (TCRAE).[32] Embora este sistema esteja em plena operação no estado,[33] juristas consideram que a emissão de TCRAE põe em risco segurança jurídica dos produtores que estão regularizando suas propriedades por meio desse instrumento.[34]
Com isso, tem prevalecido a modalidade de compensação de Reserva Legal por meio de doação ao poder público de área em Unidade de Conservação de domínio público pendente de regularização fundiária, apesar de o processo ter se mostrado burocrático e custoso para os proprietários rurais. Esta modalidade vem sendo implementada nos seguintes estados: Amazonas, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo. O programa paulista determina expressamente que a compensação de Reserva Legal por meio de doação de áreas em Unidades de Conservação constitui uma de suas diretrizes e deve ser facilitada.
Por fim, regimes jurídicos elaborados para viabilizar a compensação por meio da CRA têm sido criados entre privados, como mecanismos contratuais que acomodem “expectativas de direitos” relacionados à regularização fundiária de Unidades de Conservação, não pela doação das área ao poder público mas pela transação de CRA. Estes acordos operam à parte de um mercado formal de CRA e não garantem a regularidade ambiental das propriedades envolvidas.
[1] ADIs 4901; 4902; 4903, interpostas pela Procuradoria Geral da República (PGR) e ADI 4937, interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
[2] ADC 42/DF, interposta pelo Partido Progressista (PP).
[3] A interpretação conforme a Constituição é aquela em que, diante da possibilidade de uma norma ter diferentes sentidos, deve-se interpretá-la de acordo com a Constituição Federal. No caso do Código Florestal, a interpretação conforme à constituição deve ser feita à luz do artigo 225 que trata do meio ambiente.
[4] Climate Policy Initiative. Monitor da Implementação do Código Florestal. 2022. bit.ly/3LFPE35.
[5] Para saber mais sobre o novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), ver Chiavari, Joana e Cristina Leme Lopes. Novo Código Florestal – Parte I: decifrando o novo Código Florestal. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2015. bit.ly/3PD4ASU.
[6] Esta mudança de posicionamento foi formalizada por meio do Despacho nº 4410/2020 do MMA, que aprovou o Parecer da AGU de 2019 (Parecer nº 00115/2019/DECOR/CGU/AGU).
[7] Amicus curiae é uma expressão em latim que significa “amigo da corte” ou “amigo do tribunal”. O amicus curiae não é parte do processo, sua atuação é como “ajudante” da corte em processos complexos que requerem dados e informações que ultrapassam a esfera legal. No Brasil, apenas instituições podem ingressar em um processo como amicus curiae e, apesar do instituto ter sido criado para uma atuação imparcial, normalmente os amigos da corte pedem para integrar um processo quando entendem que a decisão lhes afeta diretamente e visam influenciar a decisão final.
[8] Ação Civil Pública nº 0175872-45.2015.8.21.0001, em trâmite perante a 10a Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre.
[9] Chiavari, Joana; Cristina L. Lopes e Julia N. de Araujo. Onde Estamos na Implementação do Código Florestal? Radiografia do CAR e do PRA nos Estados Brasileiros. Edição 2020. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2020, p. 41. bit.ly/3PAFGmN.
[10] STJ – SLS: 2950 PR 2021/0170590-0, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Publicação: DJ 07/06/2021.
[11] TRF-4 – SL: 50241775620214040000 5024177-56.2021.4.04.0000, Relator: RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA, Data de Julgamento: 25/08/2021.
[12] Além de São e Rio de Janeiro, também se enquadram nesta questão os Estados do Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Bahia e Paraná, conforme dados consolidados no relatório: Chiavari, Joana; Cristina L. Lopes e Julia N. de Araujo. Onde Estamos na Implementação do Código Florestal? Radiografia do CAR e do PRA nos Estados Brasileiros. Edição 2020. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2020. bit.ly/3PAFGmN.
[13] Em paralelo às discussões judiciais, diversas iniciativas junto ao Poder Legislativo buscam trazer alterações que assegurem um tratamento ainda mais flexível do que aquele previsto pelo atual Código para as áreas de Mata Atlântica. Destacam-se os seguintes PLs: (i) PL 311/2022, que determina que o Código Florestal deva ser aplicado ao Bioma Mata Atlântica e em todo território nacional, e (ii) o PL 364/2019, que altera o regime dos campos de altitude, flexibilizando as normas de uso e ocupação destes em relação à Lei 12.651/2012 e à Lei da Mata Atlântica.
[14] A Lei nº 7.803/1989 alterou o Código Florestal de 1965 e instituiu, pela primeira vez, o termo “Reserva Legal” e passou a classificar o regime de proteção destas áreas com base em fitofisionomias, dentre elas o Cerrado. Mas isso não quer dizer que o instituto da Reserva Legal não estava previsto desde o texto original do Código Florestal de 1965, nem que as áreas de Cerrado não estavam igualmente contempladas nas regras de proteção anteriores. O Código Florestal de 1965 estabelecia já no Art.1º: “As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem”. Além disso, o Código de 1965 estabelecia no art. 16 norma expressa sobre a proteção da vegetação nativa de parte da propriedade (que posteriormente ganhou o nome de Reserva Legal) dispondo que nas regiões Leste Meridional, Sul e Centro-Oeste (na parte sul) era necessário preservar 20% da área de cada propriedade. O Leste Meridional, bem como o Centro-Oeste na parte sul são formados majoritariamente por Cerrado, do que se conclui que este bioma sempre fez parte do instituto da Reserva Legal.
[15] MapBiomas. Cerrado em 1989. bit.ly/3yUmyKP.
[16] Nos termos do artigo 27, § 1º, 1 e 2, da Lei Estadual nº 15.684/2015, os marcos temporais a serem observados são: 1934 para “matas”, 1965 para áreas com “cobertura de floresta e 1989 para as “demais formas de vegetação”.
[17] No caso específico de São Paulo, além da incidência dos Códigos Florestais de 1934 e 1965, o estado possuía legislação própria estabelecendo outros regimes de proteção da vegetação nativa em propriedade privadas, tais como o Decreto Estadual nº 2.223/1927 que dispunha sobre a Reserva Florestal e o Decreto Estadual nº 49.141/1967, que tratava exclusivamente sobre o Cerrado.
[18] TJ-SP – ADI: 21008507220168260000 SP 2100850-72.2016.8.26.0000, Relator: Jacob Valente, Data de Julgamento: 05/06/2019, Órgão Especial, Data de Publicação: 07/06/2019.
[19] Supremo Tribunal Federal. RE 1253638/SP. bit.ly/3x3QLVh.
[20] Chiavari, Joana, Cristina L. Lopes e Julia N. de Araujo. Onde Estamos na Implementação do Código Florestal? Radiografia do CAR e do PRA nos Estados Brasileiros. Edição 2020. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2020, p. 31. bit.ly/3PAFGmN.
[21] Projeto Biota-Fapesp. Código Florestal no Estado de São Paulo. bit.ly/3mXQFbm.
[22] Artigo 5, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
[23] REsp 1.802.754-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 08/10/2019, DJe 11/09/2020.
[24] Os recursos especiais que foram afetados como tema repetitivo são: REsps 1.731.334/SP e 1.762.206/SP.
[25] Procuradoria Geral do Estado do Paraná. Parecer nº 004/ 2020-PGE. 2020. bit.ly/3FHI857.
[26] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 2113997-92.2021.8.26.0000.
[27] Chiavari, Joana e Cristina Leme Lopes. Cota de Reserva Ambiental: Melhor Opção para Compensar a Reserva Legal?. Rio de Janeiro: INPUT, 2017. bit.ly/3LE99cr.
[28] Nesse caso, ao conferir “interpretação conforme” o STF especificou de que forma aquele determinado dispositivo legal deve ser aplicado para que seja considerado adequado à Constituição Federal, acrescentando a expressão identidade ecológica que não estava prevista no texto aprovado pelo legislativo.
[29] Embargos de declaração são uma espécie de recurso por meio do qual a parte pede que o juiz ou tribunal esclareça contradição ou omissão verificada na decisão proferida.
[30] Metzger, Jean Paul et al. 2019. ”Why Brazil needs its Legal Reserves”. Perspectives in Ecology and Conservation 17, n° 3 (2019): 104-116. bit.ly/3yZpNkd.
[31] Um mercado potencial estimado em R$30 milhões em 2013, conforme estudo da Agroicone e da Biofílica: CRA – Solução para regularidade ambiental e produção no campo. 2013. bit.ly/3Ga8yhq.
[32] Decreto nº 13.977, de 05 de junho de 2014 – Dispõe sobre o Cadastro Ambiental Rural de Mato Grosso do Sul; sobre o Programa MS Mais Sustentável, e dá outras providências.
[33] Chiavari, Joana; Cristina L. Lopes e Julia N. de Araujo. Onde Estamos na Implementação do Código Florestal? Radiografia do CAR e do PRA nos Estados Brasileiros. Edição 2021. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2021, p. 34. bit.ly/3wIGhdt.
[34] Projeto Biota-Fapesp. Código Florestal no Estado de São Paulo. bit.ly/3mXQFbm.