O Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) é a principal política pública nacional de conservação da vegetação nativa em áreas privadas por meio de dois instrumentos de conservação: as Áreas de Preservação Permanente (APP) e a Reserva Legal.
Em 2022, Roraima concluiu o Zoneamento Ecológico-Econômico do estado (ZEE-RR) e adotou legislação reduzindo a proteção da Reserva Legal nas áreas destinadas ao uso produtivo. Pesquisadores do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) identificaram que a diminuição da proteção da vegetação nativa, embora permitida por lei, pode se tornar um “convite ao desmatamento”. Esta mudança na política florestal coloca o estado na contramão das metas climáticas nacionais de redução do desmatamento e de promoção de incentivos para a conservação da floresta. Além disso, outros estados da Amazônia, como Amapá e Amazonas podem seguir o exemplo de Roraima, colocando em risco a proteção legal de milhões de hectares de florestas em áreas prioritárias para a conservação.
Previsão legal de redução do percentual de Reserva Legal nos estados da Amazônia
O Código Florestal estabelece que todo imóvel rural deve manter um percentual da área com vegetação nativa conservada a título de Reserva Legal. A lei florestal, entretanto, estabelece regras diferenciadas para imóveis localizados na Amazônia Legal.
Os percentuais de Reserva Legal na Amazônia Legal variam em função do tipo de vegetação: em áreas de floresta, a Reserva Legal deve ser de 80%; em áreas de cerrado, de 35%; e em campos gerais, de 20% (Figura 1). Dado que a maior parte da Amazônia Legal é constituída por áreas de floresta, evidencia-se que quase toda a região está sujeita a regras mais rígidas de conservação.
Figura 1. Percentual de Reserva Legal na Amazônia Legal por Tipo de Vegetação
Fonte: CPI/PUC-Rio, 2023
A região da Amazônia Legal também concentra a maior extensão de áreas protegidas do país — Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs). Na revisão da lei florestal, que culminou com a aprovação do novo Código Florestal de 2012, incluiu-se a previsão de redução do percentual de Reserva Legal para imóveis no bioma Amazônia, levando em consideração a extensão das áreas protegidas.
De acordo com a atual redação do Código Florestal, o poder público estadual pode, com a participação do Conselho Estadual de Meio Ambiente, reduzir o percentual da Reserva Legal das áreas cobertas por floresta na Amazônia Legal de 80% para 50%, quando o estado tiver ZEE aprovado e quando mais de 65% do seu território for ocupado por UCs de domínio público, devidamente regularizadas, e por TIs homologadas.[1]
Roraima e Amapá são os únicos estados do bioma Amazônia que atingem, atualmente, o percentual de, no mínimo, 65% do território ocupado por UCs de domínio público e por TIs homologadas.[2] O Amazonas possui extensas áreas públicas não designadas e, caso essas áreas sejam destinadas para a criação de UC de domínio público e/ou demarcação de TIs, o Amazonas também poderá se qualificar nessa hipótese legal de redução do percentual de Reserva Legal.
Criação do Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado de Roraima e a Redução do Percentual de Reserva Legal
Com o objetivo de diminuir a proteção em imóveis rurais privados, assentamentos da reforma agrária e áreas públicas passíveis de regularização fundiária, liberando áreas para a produção agropecuária no estado, o governo de Roraima aprovou, em 2022, o ZEE do estado e, ao mesmo tempo, criou quatro novas UCs de domínio público, alcançando mais de 65% de áreas protegidas de domínio público no estado (Figura 2). Essas UCs foram criadas a partir da recategorização da Área de Proteção Ambiental (APA) do Baixo Rio Branco, um tipo de UC que abrange terras públicas e privadas, em Parque Estadual das Nascentes, Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Itapará-Boiaçu e RDS Campina, além da criação da RDS Xeriuini, em sobreposição a uma APA municipal existente com o mesmo nome.
Ainda que as APAs do Baixo Rio Branco e Xeriuini fossem constituídas por terras públicas, esse tipo de UC não exclui a possibilidade de regularização fundiária para ocupações privadas. Assim, com a recategorização da APA do Baixo Rio Branco e a criação de mais uma RDS sobre uma APA municipal Xeriuini, Roraima assegura o percentual de 65% da área do estado coberta exclusivamente por UCs de domínio público e TIs homologadas (Figura 2).
Figura 2. Mapa de Roraima Antes e Depois da Criação do ZEE-RR
Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados de CNUC, FUNAI, RAD 2022 e MapBiomas, 2023
Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados de CNUC, FUNAI, RAD 2022, MapBiomas e ZEE-RR, 2023
As novas UCs foram instituídas pela Lei Estadual nº 1.704, de 15 de julho de 2022, 15 dias antes da Lei Complementar Estadual nº 323, de 2 de agosto de 2022, dispondo sobre o ZEE do estado de Roraima. Posteriormente, o governo estadual editou o Decreto nº 33.467-E, de 31 de outubro de 2022 estabelecendo a redução do percentual de Reserva Legal de 80% para 50% nas áreas de floresta do estado. Esta mudança foi chancelada pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente de Roraima por meio da Resolução CEMA nº 3 de 25 de novembro de 2022.
Ressalta-se que apesar das UCs de domínio público de Roraima permitirem, em tese, o alcance do percentual de 65% de áreas protegidas para fins de redução do percentual de Reserva Legal, nos termos do Art. 12, § 5º do Código Florestal, a lei federal deixa expresso que as UCs precisam estar devidamente regularizadas, ou seja, sem pendências fundiárias. O Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC) não traz informações sobre a situação fundiária das UCs de Roraima, mas publicações acadêmicas sugerem haver problemas fundiários e de ocupação irregular.[3] Essa perspectiva foi confirmada em auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) que constatou que grande parte da área das UCs federais de domínio público está pendente de regularização fundiária.[4] Nesse caso, o estado precisa alcançar materialmente o percentual de 65% de áreas protegidas sob o domínio público, e não apenas “no papel”.
Redução do percentual de Reserva Legal e impacto no desmatamento em Roraima
A flexibilização da proteção nos imóveis rurais no estado de Roraima, por meio da redução do percentual de Reserva Legal, pode ter consequências catastróficas para a floresta, o clima e a biodiversidade.
Freitas et al. levantaram o impacto potencial na redução do percentual de Reserva Legal nos estados do Amazonas, Roraima e Amapá e identificaram que, só em Roraima, aproximadamente dois milhões de hectares, contendo aproximadamente 267 milhões de toneladas de carbono, perderiam a proteção legal. Além disso, 70% da área elegível nos três estados para a redução de Reserva Legal coincidem com áreas prioritárias para a conservação, sendo que metade delas de importância extremamente alta para a conservação da biodiversidade.[5]
Esses impactos negativos já estão acontecendo em Roraima. De acordo com os dados do Relatório Anual de Desmatamento (RAD) no Brasil 2022,[6] do MapBiomas, os alertas de desmatamento coincidem com as áreas privadas ou áreas públicas destinadas a assentamentos ou regularização fundiária (titulação), que estão na zona destinada à produção agropecuária no estado. Os dados levantados pelo MapBiomas mostram que de 2019 a 2022 houve 8.121 alertas de desmatamento em Roraima, cobrindo uma área de 93.205 hectares. Ressalta-se que o desmatamento nessas áreas é, em sua maioria, ilegal, pois apenas 12,3% da área desmatada foi autorizada pela autoridade competente. Além disso, apenas 8% da área desmatada ilegalmente foi objeto de ações de repressão pelos órgãos federais (Ibama e Ministério Público Federal), por meio de embargos, autos de infração e ações civis públicas. De acordo com o relatório do MapBiomas, não foi possível encontrar nenhuma informação sobre a atuação dos órgãos estaduais contra o desmatamento ilegal.
Antes da redução dos percentuais de Reserva Legal em Roraima, já havia um cenário de aumento do desmatamento ilegal nas áreas com ocupação privada (titulada ou não). Agora, essa flexibilização, embora permitida por lei, pode impulsionar o desmatamento no estado, contribuindo para emissões de gases de efeito estufa e perda de biodiversidade. Além disso, essa decisão de Roraima pode incentivar outros estados da Amazônia a seguir o mesmo caminho, com impactos em maior escala.
[1] Lei nº 12.651. Art. 12, § 5º. 2012.
[2] Levantamento feito com base nos dados do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC) e dados da Fundação Nacional do Índio (Funai).
[3] Fahel, Adriano O. “Conservação da Natureza em Roraima”. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Roraima, 2018. bit.ly/3PlXMeO.
[4] Tribunal de Contas da União (TCU). Relatório TC 023.646/2018-7. 2021. bit.ly/4694N8D.
[5] Freitas, Flavio L. M. et al. “Potential increase of legal deforestation in Brazilian Amazon after Forest Act revision”. Nature Sustainability 1, nº 11 (2018): 665-670. bit.ly/3PpF6dR.
[6] MapBiomas. Relatório Anual de Desmatamento 2022. 2022. bit.ly/3Jnt0hQ.