A Floresta Amazônica pode estar se aproximando de um ponto de não retorno, um estágio crítico de perda de vegetação que provocaria um colapso climático, com impactos ambientais, econômicos e sociais devastadores. A perda de suas 400 bilhões de árvores resultaria em um volume de emissões de carbono equivalente a cinco anos de emissões globais, tornando efetivamente impossível alcançar a meta climática e limitar o aquecimento global a 1,5ºC.
Um estudo de 1990 simulou os efeitos do desmatamento no clima da Amazônia e indicou, pela primeira vez, a possibilidade de existência de um ponto de não retorno.[1] Os resultados mostraram que a extensão do desmatamento na Amazônia poderia levar a um processo de degradação generalizada, afetando a estabilidade do ecossistema e resultando na perda da maior parte da vegetação florestal.
Desde então, as evidências da existência de um ponto de não retorno na Amazônia cresceram.[2],[3] Algumas partes da floresta já apresentam sinais de instabilidade, com perdas na capacidade de recuperação após períodos de estiagem.[4] Além disso, algumas regiões deixaram de ser sumidouros de carbono e se transformaram em fontes de carbono,[5] um destino possível para toda a floresta em um cenário de não retorno.
Nesta publicação, pesquisadores do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) apresentam resultados inéditos sobre os impactos do desmatamento em diferentes regiões da floresta por meio da simulação de milhões de cenários hipotéticos nos próximos 30 anos. A partir da adoção do modelo vegetação-clima, os pesquisadores identificaram que, em média, para cada 100 árvores desmatadas, outras 22 árvores morrem em áreas distantes do ponto de desmatamento devido à falta de água.
Os resultados evidenciam que o impacto do desmatamento não se restringe à área desmatada. Assim sendo, políticas públicas destinadas a reduzir o desmatamento e incentivar a restauração devem levar em conta esses efeitos colaterais. Para que tenham eficácia, as políticas de conservação devem ultrapassar uma compreensão limitada sobre a redução do desmatamento. Isso implica direcionar esforços públicos para áreas prioritárias que possibilitem, efetivamente, a manutenção do equilíbrio e da resiliência da floresta tropical, a fim de evitar o ponto de não retorno.
O ESTADO DA FLORESTA
As florestas tropicais proporcionam uma ampla gama de serviços ecossistêmicos, desde a regulação dos ciclos da água até a proteção contra eventos climáticos extremos.[6],[7] A relevância dessas florestas para o ciclo da água é tamanha que sua conservação se torna fundamental para as atividades econômicas que dependem da chuva, como a agricultura e a geração de energia. Além disso, a Amazônia possui a maior concentração de biodiversidade do mundo e é essencial para a subsistência das populações tradicionais. O colapso da Amazônia teria, assim, repercussões locais, nacionais e também mundiais.
Apesar de sua importância, a Floresta Amazônica continua enfrentando enorme pressão. As taxas de desmatamento cresceram nos últimos anos, levando à perda de quase 20% da área original da Amazônia.[8] Ademais, a floresta restante não está totalmente preservada, pois pelo menos outros 20% foram impactados pela degradação. Isso significa que a floresta perdeu parte de sua vegetação e, portanto, é menos capaz de fornecer serviços ecossistêmicos cruciais – principalmente o sequestro e o armazenamento de carbono.[9]
A degradação representa uma grande ameaça para a integridade da floresta. Estima-se que a degradação foi responsável por quase 70% das emissões globais de carbono provenientes de florestas tropicais entre 2003 e 2014; enquanto o desmatamento provocou os 30% restantes.[10] A degradação florestal ocorre de várias formas — incêndios florestais, extração seletiva de madeira e o próprio desmatamento contribuem para a degradação florestal ao comprometerem a integridade da vegetação.
O desmatamento pode impulsionar a degradação e acelerar o ritmo de perda florestal adicional para além das medições atuais. Essa situação se materializa de algumas maneiras, como através dos efeitos de borda. Após uma área desmatada, a vegetação ao longo da nova fronteira da floresta fica sujeita a condições atípicas — como alterações de temperatura, luminosidade e vento — que podem interferir no equilíbrio local do ecossistema e desencadear o início da degradação.
O desmatamento também pode impulsionar à degradação através da mudança dos padrões de chuva, que pode provocar a degradação de áreas distantes das regiões desmatadas. Esta publicação demonstra como os fenômenos desmatamento e degradação estão conectados e oferece uma possível explicação sobre o porquê de uma parcela relevante da degradação ocorrer longe das áreas desmatadas.
O EFEITO DOMINÓ: DESMATAMENTO, CHUVAS E DEGRADAÇÃO
O efeito dominó que conecta o desmatamento e a degradação resulta da relação entre a floresta e o ciclo da água (Figura 1). O ciclo da água se inicia no oceano, onde a energia do Sol evapora a água e leva a umidade para o ar. Em seguida, essa umidade é transportada para as terras continentais e gera precipitação. A água precipitada fica no subsolo e/ou se desloca para os rios e, eventualmente, retorna ao oceano, fechando o ciclo. Em uma floresta tropical, no entanto, essa dinâmica muda completamente. Quando chove, as árvores absorvem a água do solo e, por um processo de transpiração, devolvem-na à atmosfera, reciclando efetivamente a chuva e recarregando a umidade das nuvens. Essa umidade é, então, transportada pelo vento, criando o mecanismo conhecido como “rios voadores”. Cerca de metade da chuva na Amazônia é reciclada pelas árvores.[11]
Figura 1. A Relação entre Ciclo da Água e Florestas Tropicais
Fonte: CPI/PUC-Rio, 2023
Nesse sentido, menos árvores implica menos transpiração, o que significa que a atmosfera não será recarregada e, consequentemente, produzirá menos chuva em outros locais. Assim, para a floresta, o desmatamento reduz efetivamente a disponibilidade de água em outras partes da floresta, uma vez que as árvores afetadas transpiram menos e eventualmente morrem. Essa situação causa a degradação de outras regiões da floresta e reduz ainda mais o volume de água que se move na direção do vento. O desmatamento gera um efeito dominó de degradação (Figura 2).
Figura 2. O Efeito Dominó do Desmatamento
Fonte: CPI/PUC-Rio, 2023
MODELAGEM DO IMPACTO DO DESMATAMENTO SOBRE A DEGRADAÇÃO E A RESILIÊNCIA FLORESTAL
A resiliência refere-se à capacidade da floresta restaurar seu equilíbrio e sua funcionalidade, como o armazenamento de carbono e a prestação de serviços ecossistêmicos essenciais, após um período de seca ou estresse ambiental.[12] Na Amazônia, o ponto de não retorno representa uma perda extrema de resiliência florestal. Isso implica dizer que existe um padrão de desmatamento que tem o potencial de, essencialmente, desencadear a morte da floresta inteira. No entanto, também pode existir um padrão menos extremo (mas igualmente devastador) de desmatamento e extinção. Evidências indicam que podem existir também pontos de não retorno locais, a partir dos quais regiões específicas da Amazônia perdem sua capacidade de se recuperar de períodos de seca. Em outras palavras, o ponto de não retorno não é, necessariamente, um único evento cumulativo, mas pode ser uma série de eventos que corroem a resiliência geral da floresta. Entender a dinâmica do efeito dominó pode ajudar os formuladores de políticas a focalizarem esforços em áreas críticas de conservação para evitar pontos de não retorno locais e também o colapso de toda a floresta.
Os pesquisadores do CPI/PUC-Rio construíram um modelo vegetação-clima que possibilita investigar a existência e a extensão de um efeito dominó na Amazônia, além de identificar áreas prioritárias para ações de conservação e restauração. Esse modelo considera dois elementos-chave. O primeiro elemento é espacial, o que significa que, em determinado momento, é imprescindível entender como a vegetação de uma região impacta outras partes da floresta. O outro elemento é temporal, o que significa que o estado de conservação de uma determinada área afeta a resistência de sua vegetação no futuro.
O modelo vegetação-clima do CPI/PUC-Rio estima o impacto do movimento vento acima e o estado da floresta hoje na floresta do futuro. Essa abordagem possibilita uma avaliação em larga escala dos impactos do desmatamento em diferentes regiões ao longo dos próximos 30 anos, simulando milhões de cenários hipotéticos de desmatamento. A análise concluiu que, em média, para cada 100 árvores desmatadas, a degradação destrói outras 22 árvores por falta de água.
A Figura 3 ilustra o impacto do efeito dominó do desmatamento em toda a floresta, seguindo as trajetórias dos rios voadores. Atualmente, cerca de 20% da Amazônia já foi desmatada. Ainda que o desmatamento fosse completamente interrompido agora, haveria um adicional de 13% de áreas degradadas nos próximos 30 anos (Cenário A). Se, no entanto, o desmatamento continuar até o limiar de 40% da floresta, haverá mais 20% de degradação da floresta nos próximos 30 anos (Cenário B). Nesse patamar, a Amazônia perderia cerca de 60% de sua densidade vegetal, e a floresta tropical entraria em colapso climático.
Figura 3. Estimativa de Cenários de Desmatamento no Período de 30 Anos
Fonte: CPI/PUC-Rio, 2023
LIÇÕES APRENDIDAS
O aumento do desmatamento na Amazônia aproxima cada vez mais a floresta da perda total de resiliência, podendo desencadear um ponto de não retorno antes do esperado. Os pesquisadores do CPI/PUC-Rio desenvolveram um modelo que os formuladores de políticas podem adotar para quantificar e estimar o impacto de longo alcance do desmatamento em outras regiões da floresta. Tendo em vista que os tomadores de decisão buscam identificar abordagens para conter o desmatamento e promover a restauração, é fundamental que as políticas públicas levem em conta a complexa relação existente entre as florestas e o clima. Através da aplicação do modelo vegetação-clima os formuladores de políticas poderão identificar as áreas prioritárias de conservação e restauração para evitar um efeito dominó catastrófico de desmatamento, degradação e redução do abastecimento de água dentro e fora da floresta.
Os autores gostariam de agradecer à Amazon Web Services por fornecer a capacidade computacional e a assistência técnica necessária para executar a análise de dados da publicação, em particular Ilan Gleiser e Evan Bollig. Também gostaríamos de agradecer a Natalie Hoover El Rashidy, Giovanna de Miranda, Gustavo Pinto e Camila Calado pela edição e revisão do texto e Nina Oswald Vieira pela formatação e design gráfico.
[1] Shukla, Jagadish, Carlos Nobre e Piers Sellers. “Amazon deforestation and climate change.” Science 247, nº 4948 (1990): 1322-1325. bit.ly/42j4V2a.
[2] Panisset, Jéssica S. et al. “Contrasting patterns of the extreme drought episodes of 2005, 2010 and 2015 in the Amazon Basin.” International Journal of Climatology 38, nº 2 (2018): 1096-1104. bit.ly/43Aqyfm.
[3] Hirota, Marina et al. “The climatic sensitivity of the forest, savanna and forest–savanna transition in tropical South America”. New Phytologist 187, nº 3 (2010): 707-719. bit.ly/3IPdgnw.
[4] Boulton, Chris A., Timothy M. Lenton e Niklas Boers. “Pronounced loss of Amazon rainforest resilience since the early 2000s”. Nature Climate Change 12 (2022): 271-278. bit.ly/43eSmWP.
[5] Gatti, Luciana V. et al. “Amazonia as a carbon source linked to deforestation and climate change”. Nature 595 (2021): 388-393. bit.ly/43buCTN.
[6] Nobre, Antonio Donato. O futuro climático da Amazônia: relatório de avaliação científica. São José dos Campos: ARA: CCST-INPE: INPA, 2014. bit.ly/3WK4lcz.
[7] IPCC. Climate Change and Land: an IPCC special report on climate change, desertification, land degradation, sustainable land management, food security, and greenhouse gas fluxes in terrestrial ecosystems. 2019. bit.ly/2UZbTMP.
[8] SPA. Amazon Assessment Report. 2021. bit.ly/45A7GPC.
[9] Lapola, David et al. “The drivers and impacts of Amazon forest Degradation”. Science 379, nº 6630 (2023). bit.ly/3C099ku.
[10] Baccini, A. et al. “Tropical forests are a net carbon source based on aboveground measurements of gain and loss”. Science 358, nº 6360 (2017): 230-234. bit.ly/43bQnCF.
[11] Salati, Eneas, Attilio Dall’Olio, Eiichi Matsui e Joel R. Gat. “Recycling of water in the Amazon basin: an isotopic study”. Water resources research 15, nº 5 (1979): 1250-1258. bit.ly/3OL4Zoc.
[12] Boulton, Chris A., Timothy M. Lenton e Niklas Boers. “Pronounced loss of Amazon rainforest resilience since the early 2000s”. Nature Climate Change 12 (2022): 271-278. bit.ly/43eSmWP.