Menu
Depositphotos_78849552_SITE_01

Diversas propostas para alterar dispositivos do Código Florestal vêm sendo apresentadas no Congresso Nacional, criando um ambiente de insegurança para a implementação da lei. Esse é o caso do PL nº 36/2021, proposto pelo Deputado Zé Vitor para a alteração do prazo de adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), que, de acordo com a redação atual da lei, expira em 31 de dezembro de 2022. Às vésperas de encerrar o prazo, foi aprovado regime de urgência para a tramitação do PL, aproveitando o momento de transição de governos.

A Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) da Câmara aprovou, em dezembro de 2021, um substitutivo ao texto original da lei que, além de propor mudanças no prazo do PRA,  também altera diversos dispositivos do Código Florestal, com graves impactos à lei. Esse substitutivo incorporou alterações que são, inclusive, objeto de outros PLs, como mostra a Tabela 1. Pesquisadoras do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) analisaram o texto atualmente em tramitação e identificaram que a aprovação do PL nº 36/2021 modificará regras substanciais da lei florestal, incluindo: (i) a extensão do marco temporal das áreas consolidadas, permitindo a compensação de áreas de Reserva Legal desmatadas ilegalmente entre 2008 e 2020;  (ii) novas anistias a multas e embargos aplicados pelo desmatamento ilegal em Reserva Legal e em áreas de uso alternativo do solo, entre 2008 e 2020; (iii) a homologação tácita de todas as informações declaradas nos Cadastros Ambientais Rurais (CARs); e (iv) a mudança no procedimento de adesão ao PRA com o adiamento indefinido do prazo para a regularização ambiental das propriedades e posses rurais.

Os impactos serão extensos e profundos. A mudança do marco temporal poderá anistiar cerca de 35 bilhões de reais em multas emitidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) associadas ao desmatamento, no período compreendido entre 2008 e 2020, dos quais 92% provém de autos de infração por destruição florestal na Amazônia.[1] Caso o PL seja aprovado, poderá incentivar novos desmatamentos e alimentar a resistência do setor para a implementação do Código Florestal, na expectativa de que ocorram novas alterações na lei. Além disso, as mudanças promovidas no CAR e no PRA – os principais instrumentos de implementação do Código Florestal – trarão impactos diretos nas ações de regularização ambiental já promovidas pelos estados, inclusive nos casos em que a regularização já alcançou as etapas finais com a celebração de Termos de Compromisso.

Com isso, o PL nº 36/2021 desmantela integralmente a sistemática do Código Florestal, trazendo uma série de efeitos em cascata, inclusive em relação a dispositivos que não foram textualmente incluídos nesse substitutivo, como é o caso do regime das Áreas de Preservação Permanente (APP) em áreas rurais consolidadas (que possuem obrigações de restauração reduzidas) e de outras legislações (como aquelas associadas à regularização fundiária), fazendo ressurgir o risco de uma nova judicialização da lei florestal.

IMPACTOS DO PL Nº 36/2021

1. Alteração do marco temporal das áreas consolidadas, permitindo a compensação, fora da propriedade, de Reserva Legal desmatada até 31/12/2020

O Código Florestal de 2012 adotou a data de 22/07/2008 como um marco temporal para estabelecer dois regimes jurídicos distintos. Desmatamentos ocorridos antes dessa data estão sujeitos a um regime de regularização ambiental mais flexível, incluindo: a anistia de multas aplicadas; a manutenção de atividades em áreas de APP consolidadas; a restauração de passivos em APP com critérios bem menos rígidos; e a possibilidade de compensação da Reserva Legal fora da propriedade. Porém, os desmatamentos ocorridos após essa data se sujeitam a regras de regularização ambiental mais rígidas, como: a suspensão imediata das atividades desempenhadas irregularmente em APP e Reserva Legal e a obrigatoriedade de recomposição da vegetação suprimida, de acordo com parâmetros de restauração mais rígidos.

Ocorre que o PL nº 36/2021 modifica essa regra para permitir a compensação, fora da propriedade, de Reserva Legal desmatada até 31/12/2020, estendendo em mais de 14 anos os mecanismos de anistia originalmente previstos e acordados entre os diversos setores da sociedade, durante o longo e duro processo de discussão legislativa que culminou com a adoção do Código Florestal de 2012.

Essa alteração poderá ter efeitos em cascata com propostas de mudanças de outros marcos temporais tanto de dispositivos do Código Florestal, como é o caso das áreas consolidadas em APPs, quanto de outras legislações, como é o caso do marco legal da regularização fundiária de posses em terras públicas.

2. Novas anistias a multas e embargos aplicados pelo desmatamento ilegal em Reserva Legal e áreas de uso alternativo do solo entre 22/07/2008 e 31/12/2020

O PL nº 36/2021 contempla, também, a possibilidade de conversão de multas emitidas até 31/12/2020, submetendo-as ao mesmo regime de regularização ambiental das infrações anteriores a 22/07/2008, e isentando as áreas passíveis de uso alternativo do solo de qualquer tipo de compensação pela supressão irregular (e não autorizada) de vegetação.

Trata-se de um novo regime de anistia, que contempla não só as multas, mas também os embargos, os termos de compromisso e quaisquer outras sanções administrativas, afetando, inclusive, multas que já se encontram em fase de execução fiscal. Todos esses instrumentos passarão a ter sua exigibilidade suspensa mediante a mera “adesão” do interessado ao PRA – antes mesmo da celebração dos termos de compromisso que são necessários para assegurar a execução das medidas de regularização dos passivos.Com isso, o regime mais restritivo do Código Florestal, previsto para situações em que o desmatamento foi posterior a 22/07/2018, deixa de existir e passa a se igualar ao regime “especial” dos desmatamentos ocorridos antes dessa data. Na prática, há uma ampla anistia e a quase revogação total das regras gerais da lei. O que era regra geral, passará a ser excepcional, e o que era para ser uma “regra de transição”, passará a ser a norma prevalente.

3.  A “homologação tácita” das informações declaradas no CAR

Pela sistemática atual do Código Florestal, a regularização ambiental dos imóveis rurais depende da análise do CAR pelos órgãos estaduais competentes. Nessa etapa, as informações declaradas pelos interessados são analisadas pelos órgãos públicos.

A etapa de análise é, atualmente, o maior gargalo para a implementação do Código Florestal. Não raramente, dada a baixa qualidade dos cadastros e a dificuldade  de comunicação com os produtores, os CARs passam por diversas retificações e, até que sua análise possa ser concluída, esse processo leva muito tempo. Para se ter uma ideia do tamanho do desafio, após 10 anos da edição do Código Florestal, apenas 12% do total de CARs do país teve sua análise iniciada, e somente 2% tiveram a análise concluída.[2]

Ocorre que o PL nº 36/2021 propõe que seja estipulado um prazo de cinco anos para que os estados concluam as análises dos CARs, sob pena de “homologação tácita” dos dados nele declarados. Ou seja, após esse prazo, as informações dos cadastros não precisarão ser analisadas e serão consideradas válidas. Dada a realidade atual dos estados, essa proposta significaria, na prática, uma anistia generalizada a todo e qualquer passivo que não tenha sido voluntariamente declarado pelos proprietários rurais – que passariam a ser considerados “regulares”.  Além disso,  o CAR vem sendo utilizado tanto como instrumento de compliance ambiental  quanto no alinhamento do Código Florestal com outras políticas públicas ambientais, econômicas e fundiárias, como é o caso do licenciamento ambiental, o acesso a crédito rural e a regularização fundiária. A homologação tácita dos dados declarados do CAR teria graves impactos também nessas agendas, comprometendo a credibilidade desse documento para atestar a regularidade ambiental das propriedades rurais.

4. A alteração do procedimento de adesão ao PRA e o adiamento indefinido das medidas de regularização ambiental das propriedades rurais

Originalmente, o PL nº 36/2021 se limitava a propor uma nova prorrogação dos prazos de adesão ao PRA, dado o atraso na análise do CAR e os demais desafios enfrentados pelos órgãos ambientais estaduais na implementação do procedimento para a regularização ambiental. Com a proximidade do prazo (que se expira em 31/12/2022), a alteração dessa data já era inclusive esperada pelo setor na forma de uma medida provisória, a ser publicada ainda este ano e em discussão pelo Poder Executivo Federal.

Mas a redação do PL nº 36/2021 vai muito além: propõe excluir a referência a um prazo nacional e padronizado para adesão ao PRA, substituindo-o por um novo procedimento, que estabelece prazos diferenciados a depender do tamanho da propriedade, e condicionando a adesão ao PRA à prévia convocação dos produtores pelo órgão ambiental competente.

Ocorre que a comunicação com os proprietários rurais, para que respondam às notificações e promovam ajustes ao CAR (inclusive nos casos mais simples em que não existem quaisquer passivos a serem recuperados), tem sido apontada, de forma unânime pelos estados, como um dos maiores entraves para acelerar a etapa de análise dos cadastros.

No entanto, o PL nº 36/2011 se limita a prever que os proprietários devem responder a essas convocações no prazo de 180 dias, sem estabelecer sanção pelo não cumprimento do prazo, podendo levar a um eterno adiamento da adoção das medidas de regularização ambiental.

Ainda que os estados possam regulamentar de forma mais restritiva esse processo de convocação para celebração do PRA, é certo que esse adiamento indefinido contribui para aumentar a inércia dos proprietários rurais na implementação de suas obrigações legais.

5. Outras modificações promovidas pelo PL nº 36/2021

Além dos pontos acima descritos, o PL nº 36/2021 traz também uma série de modificações adicionais, com outros desdobramentos e implicações para o regime atual do Código, a saber:

  • a ampliação do regime de pousio para 10 anos, isentando a necessidade de obtenção de autorizações de supressão de vegetação e a adoção das obrigações dela decorrentes e estendendo esse regime para áreas embargadas;
  • a definição de prevalência do Código Florestal a todos os biomas brasileiros, com impactos ao Pampa, ao Pantanal e à Mata Atlântica (que contam com leis especiais e mais restritivas), e ao regime dos campos de altitude e campos nativos;
  • a criação de um novo regime para as áreas convertidas sem autorização, anistiando qualquer obrigação exigível por meio das autorizações de supressão de vegetação, inclusive quando o desmatamento não houver sido previamente autorizado;
  • a redução do leque de penalidades aplicáveis à conversão de áreas para uso alternativo do solo;
  • a permissão de inclusão de florestas plantadas com espécies exóticas (como eucalipto) no cálculo das áreas de Reserva Legal;
  • a extensão indefinida do prazo para a regularização das áreas de Reserva Legal (excluindo a referência ao prazo limite de 20 anos previsto no Código Florestal);
  • a ampliação das hipóteses de utilidade pública e de interesse social (permitindo a intervenção em APPs para atividades de barragens, represamentos e quaisquer outras para as quais inexistam alternativas técnicas ou locacionais); e
  • a flexibilização da lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), reduzindo a proteção de Unidades de Conservação (UC).

CONCLUSÃO

A efetividade de uma lei depende da sua regulamentação, da implementação da infraestrutura necessária para a sua execução e da fiscalização das obrigações criadas pela mesma. Mas além da atuação do Estado, a efetividade de uma lei também depende da atuação do Legislativo. Inúmeras propostas de alteração ao Código Florestal vêm sendo apresentadas no Congresso Nacional com o objetivo de flexibilizar a lei. Algumas delas pretendem alterar pontualmente um artigo da lei, mas há outras que propõem modificação substancial à sistemática atualmente em vigor, como é o caso do PL nº 36/2021.

A análise deste projeto de lei pelas pesquisadoras do CPI/PUC-Rio indica que as alterações promovidas pelo mesmo geram graves impactos ambientais, desmantelando integralmente a sistemática do Código Florestal e fazendo ressurgir o risco de uma nova judicialização da lei florestal. Após um longo período em que a lei quase não saiu do papel, por conta dos questionamentos sobre a sua constitucionalidade, cabe ao Congresso Nacional respeitar o equilíbrio de forças pactuado em 2012 e zelar pela efetividade do Código Florestal.Segue abaixo a listagem de projetos de lei, cujas propostas foram, total ou parcialmente, incorporadas no substitutivo do PL nº 36/2021 e os quais foram impactados, indiretamente, pela tramitação expedita do referido PL. Essa manobra repete um padrão já observado, no qual deputados se aproveitam da necessidade de alteração de um dispositivo específico da lei, no caso, o prazo de adesão ao PRA, que está prestes a expirar, para acelerar a tramitação de vários outros PLs.

Tabela 1. Projetos de Lei Cujas Propostas Foram, Total ou Parcialmente, Incorporadas no Substitutivo do PL nº 36/2021

Fonte: CPI/PUC-Rio, 2022

Para acompanhar e medir a pressão de alterações legislativas ao Código Florestal, o CPI/PUC-Rio lançou o Barômetro do Código Florestal no Legislativo, uma ferramenta online para acompanhamento desses PLs: bit.ly/BarometroCF.


As autoras gostariam de agradecer à Elena Ravaioli Costa Moreira pela ajuda na pesquisa dos projetos de lei, Marcelo Sessim, João Mourão e Clarissa Gandour pelo levantamento dos valores das multas de desmatamento que podem ser anistiadas, Camila Calado pela revisão de texto e Julia Berry pela diagramação.


[1] Nesse período foram aplicados cerca de 16 bilhões de reais em multas, que, quando atualizados pelo Índice de Preços ao Produtor Amplo (IPA – DI), para novembro de 2022, correspondem a 35 bilhões de reais.

[2] Chiavari, Joana e Cristina Leme Lopes. Onde Estamos e Para Onde Vamos na Implementação do Código Florestal: Oportunidades Para o Novo Governo Lula. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2022. bit.ly/OndeEstamoseParaOndeVamos.

up

Usamos cookies para personalizar o conteúdo por idioma preferido e para analisar o tráfego do site. Consulte nossa política de privacidade para obter mais informações.