Onze anos se passaram desde a edição da Lei nº 12.651 de 2012, conhecida simplesmente por Código Florestal. A lei suscita controvérsias até hoje. Há quem não aceite o acordo estabelecido à época, com concessões para o agronegócio com a contrapartida de o setor regularizar os passivos ambientais das propriedades rurais. Mas há um grupo que, definitivamente, tenta desmontar a lei desde que ela foi editada. A bancada ruralista do Congresso Nacional não se contentou com as anistias e benesses concedidas e vem apresentando, sistematicamente, projetos de lei para flexibilizar ainda mais o Código.[1]
Esse grupo se aproveita, ainda, de medidas provisórias – editadas pelo governo federal com o objetivo de modificar prazos legais – como um atalho para fazer passar os seus projetos. Esse foi o caso da MP nº 1150/2022. Editada com o objetivo de modificar, pontualmente, regras do Programa de Regularização Ambiental (PRA), mas que acabou sendo aprovada no dia 24 de maio de 2023 com graves alterações tanto ao Código Florestal como à Lei da Mata Atlântica (!).
É nessa esteira de grandes retrocessos socioambientais que o mesmo Congresso Nacional está prestes a aprovar a Medida Provisória nº 1154/2023, que trata da organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. O relatório do Deputado Isnaldo Bulhões Jr., aprovado na Comissão Mista da MP nº 1154/2023, em 24 de maio de 2023, retira do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) a gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR), transferindo-a para o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGISP).
O CAR é a principal inovação do Código Florestal e também o principal pilar da política. O Cadastro é uma espécie de radiografia ambiental da propriedade – permite ao poder público e à sociedade conhecer as áreas com florestas e outras formas de vegetação nativa, as áreas consolidadas com atividades agropecuárias e as áreas degradadas ou abandonadas. Com essas informações, é possível fazer a gestão ambiental não apenas da propriedade, mas da paisagem como um todo, identificando os passivos ambientais, as áreas prioritárias para restauro e conservação, assim como as áreas disponíveis para a expansão de atividades produtivas. O CAR também tem sido usado como instrumento de alinhamento entre diferentes políticas, como é o caso da política de crédito rural, que concede mais subvenções a produtores com CAR analisado e em conformidade com a legislação.
Quando o Código Florestal foi adotado, em 2012, não havia clareza do tamanho do desafio que seria a implementação do maior cadastro de terras do país, que abrange aproximadamente sete milhões de imóveis rurais e depende da atuação coordenada entre o governo federal e os estados. A lei atribui ao Serviço Florestal Brasileiro (SFB), atualmente vinculado ao MMA, o papel de órgão gestor do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR), que reúne e integra as bases de CAR de todos os estados. Entretanto, ao longo desses 11 anos, o SFB tem desempenhado um papel fundamental e bem mais abrangente.
O SFB desenvolveu e disponibilizou aos estados diferentes ferramentas tecnológicas de apoio ao CAR, incluindo módulos para o cadastramento dos imóveis rurais no CAR e para a análise e o gerenciamento das informações declaradas. O órgão desenvolveu a ferramenta de análise dinamizada para dar escala à etapa de análise do CAR, principal desafio da agenda. Para que os estados possam implementá-la, o SFB financiou a aquisição de bases cartográficas. Além disso, o SFB também desenvolveu o Módulo de Regularização Ambiental (MRA) para auxiliar a implementação do Programa de Regularização Ambiental (PRA). Essas ferramentas podem e devem ser aprimoradas, mas, sem esse apoio técnico-operacional, os estados não teriam alcançado os avanços atuais.
Porém, a integridade, a estabilidade e a gestão do CAR estão sob ameaça. Se o parecer do relator da MP nº 1154/2023 for aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, a gestão do CAR será transferida para o MGISP.
A justificativa do relator para colocar o CAR sob a gestão do MGISP poderia ser usada para transferir toda e qualquer base de dados públicos para esse ministério.[2] No entanto, não é isso que ele faz. Ao tratar dos cadastros de terras, o relator defende que eles fiquem sob a gestão do órgão de terras. O mesmo raciocínio deveria ser aplicado ao CAR. O Cadastro Ambiental Rural tem como objetivo a gestão ambiental da propriedade e, nesse sentido, deveria permanecer sob a gestão do MMA, onde está atualmente.[3]
A mudança do CAR para um órgão sem capacidade técnica-operacional poderá ter impactos significativos, colocando uma pá de cal no Código Florestal. Essa história já foi vista no passado com resultados bem ruins. Em abril de 2022, o SICAR – que ficava armazenado em uma infraestrutura física (data center), sob a gestão do SFB – migrou para uma infraestrutura de nuvem, sob a gestão do Departamento de Tecnologia da Informação (DTI) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Essa migração foi acompanhada por mudanças na equipe de desenvolvedores e de suporte aos estados e gerou uma série de problemas, como instabilidade constante no sistema, demora na atualização, na correção das falhas do sistema e no atendimento às demandas estaduais, impactando as análises dos cadastros, a validação pelos gerentes operacionais e a integração entre as bases estaduais e a base federal (SICAR). Os problemas no CAR também impactam diretamente os produtores rurais, que dependem das informações cadastrais atualizadas para solicitar crédito rural e outras operações financeiras e autorizações administrativas. É estratégico para o agronegócio brasileiro e, consequentemente, para o Brasil, que o CAR seja gerenciado por uma equipe de técnicos capazes de manter o sistema em operação, que conheça em detalhes o seu funcionamento e que possa dar suporte aos estados e aos produtores rurais. Como elemento estruturante do Código Florestal, o CAR não pode ficar sujeito a mudanças ministeriais, sob o risco de um apagão ambiental dos imóveis rurais. O Congresso Nacional precisa reconhecer a sua responsabilidade sobre o futuro da sustentabilidade do agronegócio brasileiro.
[1] Para saber mais, acesse o Barômetro do Código Florestal, através do link: bit.ly/BarometroNoLegislativo. O Barômetro é uma plataforma que reúne informações sobre a tramitação de projetos com alterações à lei florestal.
[2] De acordo com o parecer do relator da MP nº 1154/2023, “no que se refere à gestão do Cadastro Ambiental Rural – CAR, julgamos mais condizente com o interesse público e a eficiência administrativa a sua transferência ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, à luz de suas demais competências afetas à gestão pública, inclusive de sistemas estruturantes de organização e inovação institucional.” (MP no 1154/2023, página 41. bit.ly/3onhFHm)
[3] Ressalta-se que no mesmo parecer do relator da MP nº 1154/2023 há também uma justificativa para o CAR se manter no MMA. Na página 42, o relator sustenta que “não julgamos condizente com o interesse público a retirada da competência ao Cadastro Ambiental Rural – CAR do âmbito do Ministério do Meio Ambiente. Isso porque tal cadastro, de forma simples, é um registro público eletrônico nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, que tem finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento. Dessa forma, materialmente, é oportuno e relevante que tal competência se mantenha com o Ministério do Meio Ambiente. Motivo pelo qual rejeitamos tais emendas” (grifos nossos).